Liminar concedida no STJ pelo Ministro HERMAN BENJAMIN, nos autos do MS 26.388-DF, ao ex-Cabo da FAB – LUIZ DE GOES BRANDÃO, representado por MARIA PENHA DA GRAÇA CALHEIAS BRANDÃO, que teve sua anistia política anulada pelo MMFDH em 05/06/2020.
LIMINAR VI – A decisão Liminar concedida no STJ pelo Ministro HERMAN BENJAMIN ao ex-Cabo da FAB – LUIZ DE GOES BRANDÃO, representado por MARIA PENHA DA GRAÇA CALHEIAS BRANDÃO, que teve a anistia anulada em 5 de junho de 2020.
– A Portaria anistiadora referenciada nos autos do MS 26.388-DF foi publicada no D.O.U. nº 241, Seção 1, da quinta-feira, dia 16 de dezembro de 2003, Página 41. veja abaixo:
PORTARIA No 3.680, DE 14 DE DEZEMBRO DE 2004
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais, com fulcro no artigo 10 da Lei nº. 10.559, de 13 de novembro de 2002, publicada no Diário Oficial de 14 de novembro de 2002 e considerando o resultado do julgamento proferido pela Terceira Câmara da Comissão de Anistia na sessão realizada no dia 26 de agosto de 2004, no Requerimento de Anistia n° 2003.01.25673, resolve: Declarar LUIZ DE GOES BRANDÃO anistiado político, reconhecendo a contagem de tempo de serviço, para todos os efeitos, até a idade limite de permanência na ativa, assegurando as promoções à graduação de Segundo-Sargento com os proventos da graduação de Primeiro-Sargento e as respectivas vantagens, concedendo-lhe reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada no valor de R$ 2.935,44 (dois mil, novecentos e trinta e cinco reais e quarenta e quatro centavos), com efeitos financeiros retroativos a partir de 05.06.1998 até a data do julgamento em 26.08.2004, totalizando 74 (setenta e quatro) meses e 21 (vinte e um) dias, perfazendo um total de R$ 237.623,87 (duzentos e trinta e sete mil, seiscentos e vinte e três reais e oitenta e sete centavos), nos termos do artigo 1°, incisos I, II e III, da Lei n.º 10.559 de 14 de novembro de 2002. MÁRCIO THOMAZ BASTOS
Superior Tribunal de Justiça
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 26388 – DF (2020/0141713-0)
RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN
IMPETRANTE: MARIA PENHA DA GRACA CALHEIAS BRANDAO
ADVOGADOS: EDMUNDO STARLING LOUREIRO FRANCA – DF020252
JOÃO CARLOS DE ALMADA SANTOS – DF040514
IMPETRADO: MINISTRO DA MULHER, DA FAMILIA E DOS DIREITOS HUMANOS
INTERES.: UNIÃO
DESPACHO
Tendo em vista que a manifestação exarada às fls. 301-314, e-STJ, restringiu-se aos pressupostos para a concessão da liminar, manifeste-se o Ministério Público sobre o mérito da controvérsia.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 21 de outubro de 2020.
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
Relator
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 26388 – DF (2020/0141713-0)
RELATOR: MINISTRO HERMAN BENJAMIN
IMPETRANTE: MARIA PENHA DA GRACA CALHEIAS BRANDAO
ADVOGADOS: EDMUNDO STARLING LOUREIRO FRANCA – DF020252 JOÃO CARLOS DE ALMADA SANTOS – DF040514
IMPETRADO: MINISTRO DA MULHER, DA FAMILIA E DOS DIREITOS HUMANOS
INTERES.: UNIÃO
DECISÃO
Trata-se de Mandado de Segurança impetrado contra a Ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, no qual se requer (fls. 14-15, e-STJ):
a) seja, de pronto, deferida medida liminar a seu favor, para determinar que a Autoridade Coatora, a Senhora Ministra de Estado da Mulher, da Família e Direitos Humanos, suspenda os efeitos da Portaria de nº 1.392, de 5 de junho de 2020, que anulou a Portaria Anistiadora do falecido marido da Impetrante, até decisão do mérito do presente mandamus;
b) seja-lhe concedida gratuidade de justiça, nos termos da lei que regula a matéria;
c) seja a Autoridade Coatora notificada do conteúdo desta petição, acompanhada dos documentos a ela anexados, a fim de que, no prazo de 10 (dez) dias, preste as informações que entender necessárias;
d) seja ouvido o Ilustre Representante do Ministério Público;
e) seja, ao final, concedido o presente Mandado de Segurança, para o fito de se reconhecer a violação do direito ao devido processo legal, no que pertine ao procedimento administrativo instaurado com a NOTIFICAÇÃO de nº 340/2019/DGTI/CCP/CGP/CA, relativo à Revisão/Anulação da anistia do falecido marido da Impetrante, sendo, ipso facto declarada sua nulidade, a partir da citada notificação e, consequentemente, restabelecida a Portaria nº 3.680, de 14 de dezembro de 2004, que concedeu anistia ao falecido marido da Impetrante, da lavra do Ministro de Estado da Justiça.
Afirma a impetrante que "se viu impossibilitada de exercer o seu direito à ampla defesa e ao contraditório" (fl. 13, e-STJ).
Alega que "é dramática a perda dos seus proventos, bem como a do suporte de unidade hospitalar militar, em momento terrivelmente crítico, pois toda a humanidade está enfrentando uma Pandemia, que já mostra a sua cara assustadora no Brasil, sem qualquer previsão do que poderá ocorrer e isto quando já conta com a idade de 70 anos (incluído no grupo de alto risco)" (fl. 14, e-STJ).
A autoridade apontada como coatora prestou informações às fls. 279-292, e-STJ, aduzindo, entre outras alegações, as seguintes:
No caso concreto verifica-se a ausência de direito líquido e certo na alegação de que haveria nulidade e irregularidade na intimação alusiva ao conteúdo da Portaria n° 3.076, de 16/12/2019, que determinou a abertura de procedimento revisor dos anistiados políticos com base na Portaria n° 1.104/1964, bem como no consequente ato anulatório. A comprovação de nulidade e irregularidade não é presumida, tampouco a abusividade do ato, que, não estando plenamente comprovada, dependeria de dilação probatória, situação que não merece espaço no âmbito da ação mandamental.
Em sua manifestação, a parte não atendeu e não tinha condições de atender às exigências legais, uma vez que não comprovou a abusividade ou ilegalidade do ato impugnado, desatendendo, assim, ao art. 1º da Lei 12.016/2009.
[…]
Destarte, o ato administrativo que reconheceu a condição de anistiado político e concedeu reparações econômicas com base em afastamentos da Força Aérea Brasileira exclusivamente motivados pela Portaria n° 1.104-GM3/1964 não é passível de convalidação com o tempo, dada a sua manifesta ilegalidade, mesmo tendo-se passado mais de 5 (cinco) anos, seja por força da parte final do art. 54 da Lei n° 9.784/1999, seja porque o prazo decadencial do art. 54 da Lei n° 9.784/1999 não se aplica quando o ato a ser anulado afronta diretamente a Constituição Federal.
Assim, com base na decisão do STF proferida no RE n° 817338/DF, mesmo passados mais de 5 anos, a Administração Pública pode anular a anistia política concedida quando se comprovar a ausência de perseguição política, desde que respeitado o devido processo legal e assegurada a não devolução das verbas já recebidas.
No parecer exarado às fls. 301-314, e-STJ, o Ministério Público opinou "pela concessão do pedido liminar para que seja mantido o pagamento da pensão mensal à impetrante, bem como para que não possa lhe ser negado o uso do hospital da Aeronáutica em razão do ato impetrado, até o julgamento definitivo deste mandado de segurança".
A União manifestou interesse em ingressar no feito (fl. 316-317, e-STJ).
É o relatório.
Decido.
Os autos foram recebidos neste Gabinete em 27 de agosto de 2020.
Cuida-se de Mandado de Segurança que combate a edição da Portaria 3.076/2019, que determinou a realização de procedimento de revisão das anistias concedidas com base na Portaria 1.104/GM-3/1964, do Ministério da Aeronáutica, ato normativo esse que abrange a situação jurídico-política da impetrante.
Primeiramente, não se constata aviltamento aos primados do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal na espécie, sobretudo porque a impetrante foi notificada especificamente para apresentar razões de defesa, nos termos da Lei 9.784/1999, no âmbito do recém-instaurado procedimento revisional.
Ademais, o Pretório Excelso asseverou que, no exercício do seu poder de autotutela, a Administração Pública pode rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/1964 quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas.
Dessarte, foi assegurado, ao menos neste momento preambular, o direito de defesa, visto que suficientemente delimitado o objeto do procedimento apuratório.
Quanto ao mérito, o precedente firmado no julgamento do Recurso Extraordinário 817.338/DF se aplica ao presente caso.
Destaque-se que a ata de julgamento do retromencionado RE 817.338/DF já se encontra publicada no Diário da Justiça da União desde 18/10/2019.
Assim, após análise mais aprofundada da matéria, verifica-se que o mandamus não merece prosperar.
Repercussão econômica: pagamento de falsas anistias
Ressalta-se, inicialmente, a preocupação com a profunda repercussão econômica da questão de fundo, como se percebe a partir da leitura dos valores detalhados no Memorial apresentado pelo Comando da Aeronáutica, em resposta ao Ofício 00092/2019/DAE/DRG/SGCT/AGU, de 6 agosto de 2019, o qual se encontra acostado aos autos do Recurso Extraordinário 817.338/DF, que informa:
A Força Aérea Brasileira conta, hoje, com 2.525 (dois mil quinhentos e vinte e cinco) ex-Cabos anistiados políticos que obtiveram essa condição porque foram licenciados da Aeronáutica com base na Portaria nº 1.104/GM3/1964.
A folha mensal de pagamentos de anistiados políticos é de R$ 31.122.249,48 (trinta e um milhões, cento e vinte e dois mil duzentos e quarenta e nove reais e quarenta e oito centavos);
Considerando o somatório das prestações mensais, permanentes e continuadas, pagas ao longo de todo período após a edição da Lei 10.559/2002, bem como os valores pagos retroativos referentes ao acordo previsto na Lei n.º 11.354/06 (parcelamento de pagamentos), chega-se ao montante de R$ 3.911.425.070,42 (três bilhões, novecentos e onze milhões, quatrocentos e vinte e cinco mil setenta reais e quarenta e dois centavos), dos quais R$ 138.481.540,25 (centro e trinta e oito milhões, quatrocentos e oitenta e um mil quinhentos e quarenta reais e vinte e cinco reais) referem-se ao Termo de Adesão previsto na supracitada Lei, isso porque, até o ano 2018, inexistia rubrica específica para o adimplemento dos retroativos de anistia, e, muito embora no referido ano ter havido repasse de verba específica para esse fim, o Comando da Aeronáutica não efetivou nenhum adimplemento de retroativos, em razão da instabilidade jurídica constante das decisões que determinavam o pagamento.
No presente orçamento, em que pese ter havido a informação do então Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão sobre repasse de verbas específicas para este fim, informa-se que, até o presente momento, tais recursos não foram repassados ao Ministério da Defesa, tampouco ao Comando da Aeronáutica.
Atualmente, o montante devido aos ex-Cabos anistiados políticos desta Força Aérea, a título de retroativos, supera os R$ 750.000.000,00 (setecentos e cinquenta milhões de reais), apenas considerados os valores nominais absolutos constantes das Portarias anistiadoras.
Registre-se que, se o valor referido vier a ser corrigido monetariamente, caso a caso e ano a ano, com os indicativos do INPC, a quantia poderá chegar à casa de R$ 7.000.000.000,00 (sete bilhões de reais). No caso, se for aplicado o índice de atualização monetária IPCA e, ainda, incidir juros compostos da ordem de 1% ao mês, o valor poderá aproximar-se da casa dos R$ 13.000.000.000,00 (treze bilhões de reais) – Ofício n.º 25/AJU/21391, Protocolo COMAER n.º 97400.011582/2019-36, de 08/08/2019.
Repercussão geral objeto do Recurso Extraordinário 817.338/DF-RG
Fazendo um breve escorço histórico, constata-se que, em 2011, a Advocacia-Geral da União e o Ministério da Justiça editaram a Portaria Interministerial 134, de 15/2/2001, que determinou a revisão geral das anistias até então concedidas que tinham relação com a Portaria 1.104/GM3/1964 (considerada por si só ato de exceção de natureza exclusivamente política nos termos da Súmula Administrativa 2002.07.0003). A mencionada súmula administrativa foi cancelada pela própria Comissão da Anistia em sessão plenária realizada em 21/2/2018.
Em reforço a essa presunção, mister considerar a notícia da Advocacia-Geral da União:
a portaria de anistia que fundamenta a impetração foi submetida a procedimento de revisão, conforme determinado pelo Advogado -Geral da União e pelo Ministro de Estado da Justiça (Portaria Interministerial n° 134, de 15/2/2011 – DOU de 16/2/2011).
Assim, a discussão trazida nestes autos relaciona-se com o pedido de pagamento de valores retroativos referidos em Portaria anistiadora que, aparentemente, foi concedida sem preocupação quanto à comprovação de efetiva perseguição política sofrida pelo anistiado recorrido, tendo em vista que o ato de concessão de anistia teve como fundamento apenas a Portaria 1.104/GM3/1964.
A edição da portaria ministerial tem sido objeto de debate pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu repercussão geral sobre o tema nos autos do alhures mencionado Recurso Extraordinário.
Em 16/10/2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou o mérito da referida repercussão geral e firmou: "no exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria 1.104/1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas."
Logo, denota-se que a anistia versada foi submetida a procedimento de revisão, procedimento que, depois do julgamento do Recurso Extraordinário 817.338/DF, não poderá mais ser obstado em virtude da pretensa decadência do direito da autotutela administrativa, como se defendia na anterior jurisprudência em contrário do STJ, fundada em outros parâmetros.
Dessarte, o Supremo Tribunal Federal, ao concluir o referido julgamento, com repercussão geral reconhecida (Tema 839), decidiu ─ em sentido contrário ao entendimento que prevalecia no STJ ─ que a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/1999 não poderá jamais servir de obstáculo à revisão de atos administrativos antagônicos à Constituição, como no caso das anistias concedidas com fundamento exclusivamente na Portaria 1.104/GM3/1964, as quais contradizem o art. 8º do ADCT da CF de 1988, justamente o caso dos autos.
Assim concluiu seu voto o Ministro Relator, ao julgar o já aludido RE 817.338-DF, no que foi acompanhado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal:
Deste modo, reconheço o poder-dever da administração pública revisar seus atos, em procedimento administrativo, com a observância do devido processo legal, como uma manifestação da obrigação de velar pela supremacia constitucional, princípio propulsor do Estado Democrático de Direito.
É através do exercício da autotutela, nos casos de flagrante inconstitucionalidade, que a Administração Pública exerce seu dever de velar pelo princípio republicano.
Portanto, entendo que o ato administrativo que declarou o recorrido anistiado político não é passível de convalidação pelo tempo, dada a sua manifesta inconstitucionalidade, uma vez que viola frontalmente o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Por fim, registro que a revisão das anistias no caso em exame se refere, exclusivamente, àquelas concedidas aos Cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104, editada pelo Ministro de Estado da Aeronáutica, em 12 de outubro de 1964.
Ante o exposto, dou provimento aos recursos extraordinários para, reformando o acordão impugnado, denegar a segurança ao impetrante, ora recorrido.
Proposta de tese: No exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104/1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e não devolução das verbas já recebidas.
A evolução da jurisprudência do STJ
No princípio, a jurisprudência da Primeira Seção vinha, de forma geral, acompanhando a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal à época e reconhecendo a possibilidade de concessão de Mandado de Segurança tendo em vista o direito líquido e certo à reparação econômica, com base no entendimento firmado no já mencionado Tema de Repercussão Geral 394/STF (RE 553.710/DF).
Contudo, a Primeira Seção, no julgamento da Questão de Ordem no MS 15.706/DF, da relatoria do Ministro Castro Meira (DJe 11/5/2011), firmou que, na hipótese de decisão administrativa posterior anulando ou revogando o ato de concessão da anistia, estará prejudicado o pagamento do correspondente precatório.
Ou seja, enquanto ainda estava pendente de conclusão o julgamento do Supremo Tribunal Federal da repercussão geral relativa ao poder de autotutela, o STJ vinha concedendo a Segurança nos casos em que demonstrada omissão pelo Poder Executivo relativamente aos direitos assegurados aos anistiados políticos. Houve, contudo, a ressalva de que, sobrevinda decisão administrativa anulando ou revogando o ato de concessão da anistia, ficará prejudicado o pagamento do correspondente precatório, consoante decisão unânime da Primeira Seção na sessão de julgamento de 13/4/2011.
Nesse diapasão, com o julgamento do RE 817.338/DF-RG, o Supremo Tribunal Federal solucionou a questão quanto à possibilidade do exercício do poder de autotutela pela Administração Pública no tocante aos atos de anistia política concedidos em desrespeito aos pressupostos dispostos na Constituição Federal e na Lei Federal 10.559/2002.
No caso das anistias políticas, não é possível a concessão da Segurança pleiteada na hipótese em que os atos concessórios estejam formalmente submetidos a procedimento de revisão pela Administração Pública, com respeito ao contraditório e à ampla defesa.
Ora, o exercício do poder de autotutela pela Administração Pública no que concerne aos atos concessórios de anistia política é amplo e, conforme a orientação jurisprudencial firmada pelo Supremo Tribunal Federal recentemente, pode acarretar a revisão da própria condição de anistiado político da parte ora interessada. Por consequência lógica, se a Administração Pública concluir que não subsistem os motivos que levaram à concessão da anistia no caso concreto, não haverá o direito subjetivo ao recebimento das parcelas financeiras previstas em Lei.
Se instaurado processo administrativo de revisão do ato concessório de anistia, forçoso reconhecer que houve perda do objeto do Mandado de Segurança que se volta contra a omissão do Poder Executivo em adimplir as parcelas devidas à impetrante. Não é possível entender pela presença de inércia, pois houve atuação positiva da autoridade administrativa consubstanciada pelo exercício legítimo do poder de autotutela. Ademais, revela-se contrassenso exigir que a própria Administração, ao mesmo tempo em que revisa os fundamentos do ato concessório, tome providências no sentido de adimplir as parcelas financeiras devidas.
A omissão somente se revela na ocorrência de inadimplemento das prestações devidas apenas quando, reconhecido o status de anistiado político: (a) o caso concreto não foi submetido a procedimento de revisão; ou, (b) após procedimento de revisão, houve a manutenção do ato concessório. Somente nessas duas circunstâncias entende-se ser possível falar em omissão da Administração Pública a ser sanada na estreita via do mandamus.
O caso em disceptação não se enquadra nas hipóteses acima mencionadas, porquanto, em Informações, a autoridade administrativa afirmou que o ato que reconheceu o status de anistiado aqui discutido está submetido a procedimento de revisão haja vista o cancelamento da súmula administrativa.
Portanto, forçoso reconhecer que não há direito líquido e certo tutelável na via do Mandado de Segurança pois não foi demonstrada inércia da administração em adimplir as parcelas financeiras devidas à parte impetrante se confirmado o status de anistiado político do interessado.
Tendo a Suprema Corte modificado a validade e a eficácia dos parâmetros jurídicos que vinham sendo adotados há muito pelo Superior Tribunal de Justiça (reconhecimento da decadência), o novo entendimento, que afasta a decadência pelo fato de as anistias se revelarem atos administrativos manifestamente inconstitucionais, dá novo ânimo à União para prosseguir nos trabalhos administrativos de revisão.
Sendo certo que, durante muito tempo, os trabalhos de revisão das falsas anistias iniciados não foram adiante por causa da concessão de várias centenas de Mandados de Segurança com o objetivo de obstar a iniciativa administrativa, agora este empecilho não mais se sustenta diante do enunciado vinculante, cuja obediência não se impõe apenas ao Judiciário, mas igualmente à Administração Pública.
Assim, depois desse julgamento, a parte final do dispositivo, replicado em praticamente todas as decisões concessivas que tratam dos retroativos dos anistiados (ressalvada a hipótese de decisão administrativa superveniente, revogando ou anulando o ato de concessão de anistia política [Questão de Ordem no MS 15.706/DF]), deve, finalmente, ultrapassar o campo teórico para, enfim, encontrar aplicabilidade prática, a fim de impedir pagamentos sem justa causa pelo Tesouro Nacional, vedando-se o enriquecimento ilícito.
Consistência jurídica da reavaliação do ato declaratório da condição de anistiado
Por certo, o ato anistiador objeto de procedimento revisional está fulcrado na Portaria 1.104/GM-3/1964, expedida pelo então Ministro de Estado da Aeronáutica (ato que impediu a aquisição da estabilidade por praças da aludida Força), que havia sido considerada ato de exceção, de natureza exclusivamente política, pela Súmula Administrativa 2002.07.0003 da Comissão de Anistia.
Sucede que atualmente pende de elucidação a condição de anistiado político do falecido marido da autora. Isso porque a Portaria Interministerial MJ–AGU 134/2011 determinou a abertura de vários processos de revisão, com vistas à apuração da efetiva existência de atos de exceção de ordem política em relação a certo grupo de militares e à anulação dos benefícios concedidos de forma indevida.
O Superior Tribunal de Justiça, acrescente-se, já teve oportunidade de legitimar essa determinação, verbis:
ADMINISTRATIVO. ANISTIA POLÍTICA. MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. PORTARIA INTERMINISTERIAL 134/2011. INDEFERIMENTO DA INICIAL. AUSÊNCIA DE EFEITOS CONCRETOS. SÚMULA 266/STF. INEXISTÊNCIA DE REVISÃO DOS BENEFÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE DE SINDICAR DECADÊNCIA. DESCABE IMPINGIR RESTRIÇÃO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO SEU EXERCÍCIO PRÉVIO E INTERNO DE VERIFICAÇÃO DA JURIDICIDADE. SÚMULAS 346 E 473, AMBAS DO STF.
1. Cuida–se de agravo regimental interposto contra decisão monocrática que indeferiu a petição inicial por inadequação da via eleita, com base na Súmula 266/STF, por analogia.
2. A Portaria Interministerial 134/2011 não produziu efeitos concretos contra os anistiados políticos. Esta ordem lógica foi reconhecida pela Primeira Seção quando do julgamento de diversos embargos de declaração, interpostos pela União, fundados no advento da atacada Portaria Interministerial (EDcl nos EDcl no MS 15.396/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 4.4.2011; EDcl nos EDcl no MS 15.241/DF, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 31.5.2011; EDcl no MS 15.575/DF, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 4.5.2011; e EDcl no MS 15.257/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 4.5.2011). Logo, a impetração contra a referida Portaria assemelha– se à busca de proteção contra ato administrativo abstrato, no que se ergue a Súmula 266/STF para fundar a denegação da ordem.
3. O presente writ se dirige contra ato administrativo que não reviu a concessão da anistia política e, portanto, não sindicou a existência de decadência por lapso temporal ou má–fé. Logo, inexiste ato administrativo dirigido contra a esfera jurídica da parte impetrante. Precedentes: MS 16.425/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Seção, DJe 17.6.2011; e AgRg no MS 16.219/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Seção, julgado em 22.6.2011, DJe 30.6.2011. No mesmo sentido: MS 16.945/DF, Rel. Min. Herman Benjamin, Primeira Seção, DJe 6.10.2011; AgRg no MS 16.284/DF, Rel. Min. Castro Meira, Primeira Seção, DJe 27.9.2011; AgRg no MS 16.342/DF, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Primeira Seção, DJe 2.9.2011; e MS 16.220/DF, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Primeira Seção, DJe 6.9.2011.
4. Não é possível que o Poder Judiciário vise limitar a possibilidade de autotutela, em momento de estudos prévios ou busca de informações, à luz do que preconizam as Súmulas 346 e 473, ambas do STF. A Administração Pública possui o dever de revisar os seus atos, na medida do possível, sempre que existir fundado receio de prejuízos à coletividade. Agravo regimental improvido.
(AgRg no MS 16.223/DF, Primeira Seção, Rel. Min. Humberto Martins, DJe de 7/11/2011)
De mais a mais, a verdade é que, em momento posterior, a Súmula Administrativa 2002.07.0003 da Comissão de Anistia (que considerava a Portaria 1.104/1964 como ato de exceção) foi cancelada em Sessão Plenária Administrativa, realizada em 21/2/2018.
Aliás, em ação análoga, o STJ decidiu ser impossível conferir à mencionada Portaria 1.104/GM-3/1964 o enquadramento como ato de exceção por motivação exclusivamente política — art. 2º da Lei 10.559/2002 — capaz de justificar a declaração da condição de anistiado:
MANDADO DE SEGURANÇA. DECADÊNCIA. IMPETRAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. ANISTIA POLÍTICA. PORTARIA. ANULAÇÃO. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. NÃO OCORRÊNCIA. COISA JULGADA. OFENSA. NÃO OCORRÊNCIA. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. OBSERVADOS. SEGURANÇA DENEGADA.
I – A impetração do mandado de segurança dentro do prazo legal, ainda que perante órgão judiciário absolutamente incompetente, impede a ocorrência da decadência do direito de requerer o mandamus. Precedentes do c. STF e deste c. STJ.
II – O termo inicial do prazo decadencial para a impetração do writ deve ser contado a partir da percepção do primeiro pagamento (ex vi do artigo 54, § 1º, da Lei nº 9.784/99). Na espécie, o primeiro pagamento da prestação continuada ocorreu em 1º/6/2004 e a portaria anulatória foi publicada em 22/12/2008, razão pela qual não superado prazo decadencial.
III – A instauração, por autoridade competente, de portaria que determina a instauração de processo de revisão da condição de anistiado político do impetrante, importa exercício regular do direito de anular, causa interruptiva do prazo decadencial (conf. art. 54, § 2º, da Lei nº 9.784/99).
IV – Fica afastada a alegação de coisa julgada em relação ao MS n.º 9.700/DF, eis que nele foi simplesmente assegurado o efetivo cumprimento da Portaria n.º 2.655/2002, a qual posteriormente veio a ser anulada em razão de vício na motivação que ensejou à portaria anistiadora.
V – A Portaria n.º 1.104/GM3 de 1964, por possuir caráter impessoal, genérico e abstrato, aplicáveis a todos os militares que tenham ingressado na FAB quando tal portaria já se encontrava em vigor, não deve ser, por si só, enquadrada no conceito jurídico de arbitrariedade e exceção previstos na Lei n.º 10.559/2002.
VI – Devidamente oportunizado ao Impetrante o exercício da ampla defesa e do contraditório no processo administrativo que ensejou a portaria anulatória do ato anistiador, não há qualquer vício a macular o procedimento, vez que o ato impugnado foi proferido após minuciosa análise da defesa e documentos integrantes do processo anulatório. Preliminares rejeitadas. Segurança denegada.(MS 14.748/DF, 3ª Seção, Rel. Ministro Felix Fischer, DJe de 15/6/2010).
Assim, muito embora o debate jurídico subjacente envolva questões de maior complexidade, a verdade é que não pode ser considerado ilegal o procedimento revisional deflagrado, estando a determinação da autoridade impetrada — e, consequentemente, a notificação da impetrante para apresentar razões de defesa — albergada pelo poder-dever de autotutela da Administração.
Efeito imediato
Nesse ínterim, resta observar que, por demais trivial, a tese acolhida no julgamento de Recurso Extraordinário, com repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, surte efeito imediato, logo a partir da publicação da ata de julgamento, não sendo necessário aguardar a publicação do acórdão, muito menos seu trânsito em julgado, conforme numerosos precedentes tanto do Supremo como do Superior Tribunal de Justiça.
Portanto, "nem a pendência da publicação nem a do trânsito em julgado de acórdão proferido sob a sistemática da repercussão geral impedem a imediata aplicação, pelos demais órgãos do Poder Judiciário, da tese firmada no leading case" (EDcl no AgRg no REsp 1.149.615/RS, Rel. Min Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe de 9/5/2018).
Na mesma linha: RE 982.322 AgR-ED-ED, Rel. Min. Cármen Lúcia (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2017, DJe de 6/12/2017; RE 1.065.205 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJe de 4/10/2017; Rcl 18.412 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 23/2/2016; AgRg no REsp 1.122.644/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 9.3.2018; AgInt no AREsp 1.346.875/PE, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe de 29/10/2019; AgInt no REsp 1.645.431/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 13/4/2018; AgRg no REsp 1.481.098/RN, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 26/6/2015; AgRg nos EDcl no REsp 1.477.866/RN. Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 27/8/2015; AgRg no REsp 1.491.892/RN, Rel. Min. Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 3/6/2015; AgRg no REsp 1.296.196/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, Quinta Turma, DJe 2/6/2015.
Dessa forma, a redação do art. 1.035, § 11, do Código de Processo Civil e os precedentes da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça reforçam a plena aplicabilidade da tese a partir da publicação da Ata de Julgamento e a vinculação das instâncias precedentes à orientação firmada sob repercussão geral.
Ausência de direito líquido e certo
Não existe direito líquido e certo suscetível de amparo no writ quando o ato declaratório da anistia está submetido a revisão, na esfera administrativa, para possível invalidação.
Logo, in casu, não há direito líquido e certo, considerando o resultado do julgamento do Recurso Extraordinário 817.338/DF e a redação dada à tese oriunda do Tema 839 da Suprema Corte — clara em determinar que a Administração, em seu poder-dever de autotutela, deve rever os atos de concessão de anistia a ex-Cabos da Aeronáutica que jamais foram perseguidos políticos (ou seja, com base exclusivamente na Portaria 1.104/1964).
Precedente do STJ
A Primeira Seção do STJ, em recentes julgados de casos idênticos, pacificou o entendimento no sentido esposado neste decisum (MS 19.070/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel p/ acórdão Min. Og Fernandes, julgado em 12/2/2020, DJe de 27/3/2020; MS 25.855/DF, Rel. Min. Regina Helena Costa, DJe de 19/3/2020; MS 25.870/DF, Rel. Min. Gurgel de Faria, DJe de 25/3/2020; MS 25.844/DF, Rel. Min. Francisco Falcão, DJe de 20/03/2020; MS 25.748/DF, Primeira Seção, Rel. Min. Og Fernandes, DJe de 10.3.2020).
Conclusão
Pelo exposto, com fundamento nos arts. 6º, § 5º, da Lei 12.016/2009 e 34, XIX, do RISTJ, denego a segurança, sem resolução do mérito, prejudicado o pedido de liminar.
Sem condenação em honorários, em conformidade com o disposto no art. 25 da Lei 12.016/2009 e na Súmula 105 do STJ.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 28 de agosto de 2020.
MINISTRO HERMAN BENJAMIN
Relator
Ministro Herman Benjamin – STJ
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MS 26388(2020/0141713-0 – 12/11/2020)
Decisão Monocrática – Ministro HERMAN BENJAMIN
MS 26388(2020/0141713-0 – 28/09/2020)
Decisão Monocrática – Ministro HERMAN BENJAMIN
MS 26388(2020/0141713-0 – 03/08/2020)
Decisão Monocrática- Ministro HERMAN BENJAMIN
MS 26388(2020/0141713-0 – 22/06/2020)
Decisão Monocrática- Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
E-mail gvlima@terra.com.br
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