A prevaricação é delito atribuído ao agente público, quando este retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou mesmo vem a praticá-lo contra expressa disposição legal, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319). No perquirir da configuração de tal delito, deve o juiz analisar, com profundidade, se realmente o funcionário agiu objetivando a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Se ausentes quaisquer destas motivações, ausente está também a prevaricação.
Matéria extraída, parcialmente, deste Portal onde foi republicada em 02/06/2016
VI – A PREVARICAÇÃO
Ao estudar o delito de desobediência, mormente pela sua angularização ativa, reclama JULIO FABBRINI MIRABETE[12], com absoluta razão, seja este praticado por particular, sob pena de atipicidade da ocorrência. E diz: "Não se configura o citado ilícito se tanto o autor da ordem como o agente se achavam no exercício da função quando da sua ocorrência (RT 395/315, 487/289; RF 276/249; JTACrSP 12/96). Neste caso, o fato poderá caracterizar, eventualmente, o crime de prevaricação (art. 319)."
Pois é olhando a sugestão de MIRABETE que será desenvolvido o presente tópico do estudo.
É a prevaricação um delito atribuído ao agente público, quando este retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou mesmo vem a praticá-lo contra expressa disposição legal, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319).
Resta a pergunta: quando um funcionário público (CP, art. 327 e § 1º) descumpre uma determinação judicial, pratica prevaricação?
O que primeiro deve ser sindicado é se o pretenso sujeito ativo (o funcionário) tinha atribuições e poderes para dar seguimento à ordem judicial. Ou seja, deve ser aferido se o ato praticado, omitido ou retardado está na esfera funcional do servidor. Em sendo positiva a resposta, deve prosseguir a análise da configuração dos demais componentes do standard delituoso em baila.
De relevância é também, para o delineamento da prevaricação, que o comportamento (comissivo ou omissivo) do funcionário público seja indevido. Assim, deverá o servidor público ter agido de forma ilegal, injusta ou injustificada, conforme leciona MIRABETE[13].
Para mim, o aspecto mais importante a ser enxergado na tipificação da prevaricação voltada contra ordem judicial, diz respeito ao elemento subjetivo do delito, que, no dizer das escolas vetustas, é o dolo específico, marcado pelo intuito de satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
É verdade que ao instante em que o funcionário federal deixa de atender a uma determinação judicial, está ele, de plano, afrontando a Lei 8.112[14], que em seu art. 116, inciso IV, lista entre os deveres do servidor "cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais", proibindo-o também de "opor resistência injustificada ao andamento de documento e processo ou execução de serviço" (art. 117, IV). Não menos verdadeiro é, também, que, para violar a regra do art. 319 do CP, é imperioso que a desatenção tenha ocorrido visando à satisfação de interesse ou sentimento particular.
Busco em MIRABETE a explicação para ditos elementos subjetivos: "Interesse pessoal é a relação de reciprocidade entre um indivíduo e o objeto que corresponde a determinada necessidade daquele; é um estado anímico em relação a qualquer fato ou objeto, seja patrimonial, material ou moral. (…) Sentimento é um estado afetivo ou emocional, decorrente, pois, de uma paixão ou emoção (amor, ódio, piedade, avareza, cupidez, despeito, desejo de vingança, subserviência, animosidade, simpatia, benevolência, caridade, etc.)".[15] E exemplifica o renomado penalista, como espécie de prevaricação por sentimento, a praticada por "delegado de polícia que deixa de cumprir ordem judicial com relação a recolhimento em cela especial, permitindo que investigador a ele submetido tivesse livre trânsito pelas dependências da delegacia, facilitando-lhe com isso a fuga (RT 445/348)".
Na análise da caracterização da prevaricação que se estuda, deve o juiz apurar cada vez mais o seu equilíbrio, no intuito de aferir se realmente o funcionário agiu objetivando a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Dos dois requisitos subjetivos, o primeiro oferece melhores condições de constatação, como ocorre, por exemplo, no caso de dirigente de repartição pública que retarda o cumprimento de ordem judicial que suspende a integração de vantagem financeira aos vencimentos dos funcionários sob o seu comando – quiçá dos seus próprios ganhos.
Já com referência ao sentimento pessoal, parece acontecer, na maioria dos casos, uma subserviência intolerável dos funcionários para com os seus superiores, em muito transcendendo o respeito à hierarquia recomendado pelo pré-citado art. 116, IV, da Lei 8.112/90. Noutros casos, são constatadas manifestações explícitas de prepotência, do tipo "quem manda aqui sou eu!", exigindo uma reprimenda eficaz ao restabelecimento da primazia do interesse público no trato da matéria administrativa.
Não é demais relembrar que a ação (ou a inação) do possível prevaricador deve ser evidentemente gizada de interesse ou sentimento pessoal, sendo "inépta (sic) a denúncia que não especifica o sentimento pessoal do autor" conforme entendimento do TRF da 4ª Região[16] e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL[17].
O tão festejado MIRABETE ressalta a abrangência do art. 319 do CP, ao explicar que este "inclui o ato administrativo, o legislativo e o judicial"[18], tendo nessa linha entendido o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA que a recusa "ao cumprimento de ordem judicial constitui fato do qual emerge a dedução necessária de que o agente assim procede para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, pois não há, em princípio, outra explicação para esse comportamento. Não pode estar isento de dolo aquele que não cumprir a ordem do magistrado."[19]
VII – ABUSO DE AUTORIDADE
Há quem pense, com certa lógica, que ao instante em que deixa de atender ao que ordenado por um juiz, o funcionário público labora com abuso de autoridade ou abuso de poder[20], posto que pratica ato lesivo da honra ou do patrimônio da pessoa física ou jurídica beneficiária da decisão judicial, a teor do disposto no art. 4º, "h", da Lei 4.898/65.
Por si só, não vejo como possa subsumir a recalcitrância do servidor ao tipo legal acima invocado. Acho-o muito genérico para os fins de encaixar o comportamento do insurreto. Em atenção ao princípio da legalidade e aos ensinamentos acerca da tipicidade penal, não entendo – pura e simplesmente – como abusador da autoridade ou do poder, aquele que recusa dar cumprimento a uma ordem judicial.
Ademais, não se pode olvidar que a mens legis da Lei 4.898/65 foi a de armar o cidadão contra os desmandos dos ocupantes do poder, reproduzindo, inclusive, nos seus artigos 3º e 4º, direitos já asseverados ao homem nas diversas declarações políticas, tais como a Declaração de Direitos do Estado de Virgínia (1776), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948). Na opinião de GILBERTO PASSOS DE FREITAS e VLADIMIR PASSOS DE FREITAS, "todos os princípios estabelecidos em tais Declarações e que hoje fazem parte de quase todas as Constituições existentes nos mais diversos países, são reproduzidos na Lei de Abuso de Autoridade. Isso significa que os tipos estabelecidos nesta lei especial são, pura e simplesmente, a repetição das declarações de direitos do homem. É bem por isso que ela protege a liberdade de locomoção, o sigilo de correspondência, a inviolabilidade de domicílio, a incolumidade física e outros tantos valores consagrados internacionalmente.
(…) Verifica-se, pois, que a Lei 4.898, de 1965, tem a finalidade de prevenir os abusos de autoridade, dando a quem quer que seja o meio necessário para fazer valer os direitos e garantias previstos na Constituição, sendo um instrumento da mais alta importância na defesa dos direitos do homem."[21]
Não se desconhece que muitos doutrinadores, nacionais[22] e estrangeiros,[23] atribuem a sujeição passiva do abuso oficial, bipartidamente, ao próprio Estado e ao particular que sofre os reflexos do ato. Entretanto, insisto na idéia de que a tutela imediata objetivada pela Lei 4.898 é a dos interesses e direitos do particular, protegendo mediatamente os direitos e interesses da Administração Pública. Daí não reconhecer – pelo menos em tese – a pretendida utilidade da figura criminosa do abuso de poder ou de autoridade, para através dela combater a resistência de funcionário público ao cumprimento de ordem judicial.
Sem qualquer embargo da posição acima esgrimida, entendo que comete o ilícito de abuso de autoridade, o agente público que pratica, sponte sua, quaisquer das ações elencadas na Lei 4.898, art. 4º. Evidentemente, tais ações podem ser cometidas pelo agente público, sem que para tanto tenha sido provocado ou recebido ordens de autoridade judiciária competente. Portanto, o delito terá como sujeito passivo o cidadão, e não a autoridade judiciária.
VIII – ALGUMAS CONCLUSÕES E SUGESTÕES
1ª) O presente estudo tem como objetivo principal ofertar uma contribuição, útil tanto aos Juízes como aos particulares, e até mesmo à administração pública, que disporá de elementos para pautar a sua conduta vindoura, evitando transtornos àqueles que verdadeiramente estipendiam o seu funcionamento.
2ª) A desídia do funcionário público, em dar cumprimento às determinações judiciais, foi aqui analisada apenas sob a ótica do Direito Penal, sendo certo que tal comportamento poderá sofrer estudo mais apurado em outros campos da ciência jurídica, principalmente no Direito Processual, no Direito Civil e no Direito Administrativo.
3ª) Para a configuração criminal do comportamento do servidor público omisso em cumprir ordem judicial, deve ser tomado em conta, basilarmente, o princípio da legalidade, insculpido na CF, art. 5º, XXXIX e no CP, art. 1º.
4ª) Existe uma inescondível preferência em caracterizar o comportamento do funcionário que deixa de cumprir ordem judicial como desobediência. Entretanto, não se pode descurar que a desobediência está encartada no Código Penal como um delito daqueles "praticados por particular contra a administração pública", já que integrante da Parte Especial, Título XI, Capítulo II. E sendo crime que só pode ser praticado pelo particular, não se pode afirmar seja ele perpetrado por funcionário público, a menos que o agente estatal esteja despido dessa condição.
5ª) Afirma, preocupado, FÁBIO BITTENCOURT DA ROSA: "Se a desobediência a ordem judicial não tipifica o crime do artigo 330 do Código Penal, quando praticado por servidor público, outra solução tem que ser estabelecida em nível legislativo."[24] E tem razão o juiz gaúcho em clamar por um remédio que sirva a coartar procedimentos como o acima referido, já que a prisão por desatenção a ordem judicial não está prevista na legislação nacional com força executiva, como ocorre aos inadimplentes de pensão alimentícia e aos depositários infiéis.
6ª) O agente público, ao deixar de cumprir uma determinação judicial, não comete o delito de resistência (CP, art. 329), já que – consoante já afirmado supra – é impossível que um delito previsto para ser praticado "por particular contra a administração pública em geral" (CP, arts. 328 a 337), tenha como sujeito ativo um funcionário público. Ademais, não é razoável que um funcionário público ocupante de cargo ou função que lhe permita cumprir ou ordenar o cumprimento de uma ordem judicial, atue com violência ou ameaça contra o oficial de justiça que portará a ordem emanada do magistrado. E sem violência ou ameaça, não há que falar-se em resistência.
7ª) A prevaricação é delito atribuído ao agente público, quando este retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou mesmo vem a praticá-lo contra expressa disposição legal, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal (CP, art. 319). No perquirir da configuração de tal delito, deve o juiz analisar, com profundidade, se realmente o funcionário agiu objetivando a satisfação de interesse ou sentimento pessoal. Se ausentes quaisquer destas motivações, ausente está também a prevaricação.
8ª) Não pratica abuso de autoridade (ou abuso de poder), o servidor público que recusa cumprimento a uma ordem judicial. Pode, entretanto, cometer o delito previsto na Lei 4.898/65, se pratica quaisquer das ações previstas no art. 4º do mencionado diploma, tendo como sujeito passivo o próprio cidadão atingido pelo incorreto comportamento do agente do Estado; não figurará no pólo passivo o Estado, por sua atividade jurisdicional.
(…)
BIBLIOGRAFIA
[12] ob. op. cit., pág. 350.
[13] opus, pág. 318.
[14] Em se tratando de servidor público municipal ou estadual, é de ser considerado como parâmetro do seu comportamento o disposto no estatutos funcionais dos respectivos níveis administrativos.
[15] ob. op. cit., pág. 319. [16] Ac. unân. da 3ª Turma, public. em 02.09.91, Rec. Crim. 90.04.23171-4-PR, Rel. Juiz SILVIO DOBROWÓLSKI, Jurisprudência ADV/COAD, 1992, pág. 151, verbete 57585.
[17] RTJ 111/288.
[18] ob. cit., pág. 318.
[19] Rel. Des. MAY FILHO, in REVISTA DOS TRIBUNAIS, vol. 527, pág. 408.
[20] A terminologia, entre nós, é bastante questionada. Para uns, é certo dizer abuso de poder; para outros, o correto é abuso de autoridade. Tem a palavra DAMÁSIO E. DE JESUS: "De ver-se que, sob o ponto de vista jurídico-penal, os crimes definidos na Lei n. 4.898/65 não receberam nomem juris apropriado. Não se trata de abuso de autoridade, mas de abuso de poder. Em face de nossa legislação penal, não se confunde o abuso de poder com o de autoridade. O abuso de poder é o uso fora dos limites correspondentes a todo poder ou autoridade, o seu exercício excessivo e ilegítimo. Na hipótese de abuso de autoridade, cuida-se de seu uso ilegítimo no âmbito das relações privadas; na de abuso de poder, o agente deve possuir cargo ou ofício público."(DIREITO PENAL, 4º volume, 4ª edição, S. Paulo, Saraiva, 1993, pág. 283).
[21] ABUSO DE AUTORIDADE, 4ª edição, S. Paulo, RT, 1991, págs. 13, 14 e 16.
[22] v.g. DAMÁSIO E. DE JESUS, ob. cit., pág.285.
[23 ]MANZINI (Trattato di Diritto Penale Italiano, vol. V., Unione Tipografico, Editrice Torinense, Torino, Itália, 1950, 231) e SOLER (Derecho Penal Argentino, tomo V, Tipografia Ed. Argentina, Buenos Aires, Argentina, 1951, 154).
[24] JUDICIÁRIO: DIAGNÓSTICO DA CRISE, in Anais do Encontro Nacional de Magistrados da JF, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, Brasília, 1993.
Fonteda Matéria: PREVARIC [ARTIGO] – JFRN
(*) Ilustrações fotográficas e imagens nossas
Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
E-mail gvlima@terra.com.br
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