Atualizado: 02/04/14 – 16h29

  • Editada em 1964, medida faz com que cabos e soldados trabalhem por no máximo oito anos
  • Para as Forças, é um ato puramente administrativa, para conter gastos. Mas para o Ministério da Justiça, uma medida de exceção
Letícia Fernandes (Email · Facebook · Twitter)

RIO – Quase três décadas depois do fim da ditadura, o Ministério da Defesa e as Forças Armadas travam uma batalha silenciosa pela memória do que se passou dentro dos quarteis — e nos porões — da ditadura. O imbróglio está na Aeronáutica, mais especificamente no grupo de cabos da Força Aérea Brasileira (FAB), atingidos pela Portaria 1.104, editada em 1964, que passou a restringir o tempo de trabalho de cabos e soldados a no máximo oito anos.

A discussão é se a portaria seria uma medida puramente administrativa, para conter gastos, ou ato de exceção, com o objetivo de limpar da força a influência comunista. Outra polêmica é se a portaria teria natureza persecutória para todos os cabos, ou apenas para os que entraram na Aeronáutica antes de 1964. A Comissão de Anistia, por exemplo, reconheceu a portaria como ato de exceção para toda a categoria, mas mudou o entendimento e passou a considerar que teriam direito à anistia apenas os cabos que entraram antes de 1964.

Há pelo menos 12 anos, a guerra de versões e a judicialização das discussões a respeito do grupo criou a categoria dos “desanistiados”: militares que entraram na Aeronáutica depois de 1964 e tiveram suas anistias reconhecidas a partir de 2002 pelo Ministério da Justiça começaram a receber as indenizações, mas tiveram os benefícios revogados.

Quando saíram as primeiras anistias, o Ministério da Defesa se insurge contra a decisão e não admite essa disputa em torno da memória. E uma forma de contestar foi a de elaborarem pareceres jurídicos contrários ao da Comissão. Isso virou uma briga jurídica interna, é uma guerra de pareceres. A comissão entendeu que aqueles que ingressaram na FAB posteriormente (à edição da Portaria) já conheciam as novas regras do jogo — explica Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia.

Eliezer Figueira foi um dos cabos beneficiados por decisão de 2002, do Ministério da Justiça. O então ministro Paulo de Tarso Ribeiro reconheceu a anistia do grupo de 495 cabos da FAB, baseando-se em entendimento da Comissão de Anistia do mesmo ano. A Comissão entendeu, por meio de Súmula Administrativa, que a Portaria 1.104 era “ato de exceção, de natureza exclusivamente política”. O presidente da Comissão era José Alves Paulino.

Figueira, de 65 anos, entrou na Aeronáutica em 1968. Em 2002, a Justiça determinou o pagamento de R$ 213.412,50 ao ex-cabo da FAB. Ele começou a receber em 2004 e foi excluído da folha de pagamento em 2007.

— A lei 10.559 não cita diferença entre os primeiros cabos e os que entraram depois de 64. Eu estava recebendo, um dia chegou um telegrama dizendo que eu não receberia mais. Virou uma bola de neve e até hoje estão me cobrando. Perdi casa, tive que devolver carro e estou devendo mais de R$ 100 mil ao banco.

Ainda em 2002, o então ministro do STF, Nelson Jobim, entendeu que o conteúdo político da portaria “é induvidoso, pois editada num momento histórico em que se procurava punir os oficiais considerados subversivos, por suas concepções político-ideológicas, através de mascarados atos administrativos”.

No ano seguinte, o Comando da Aeronáutica apelou ao novo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, em documento assinado pelo comandante Luiz Carlos Bueno, pedindo que as “anistias administrativas”, como chamou, fossem anuladas: “Julgo importante ressaltar a preocupação com o fato de que, permanecendo a ‘anistia administrativa’ destes casos, tal circunstância, a par de acarretar prejuízos ao erário público, provocará a instabilidade das relações jurídicas já consolidadas na pacífica jurisprudência de nossos tribunais e na legislação militar”.

Em 2004, Thomaz Bastos acatou o pedido e instaurou processo de anulação das portarias, argumentando que "a referida portaria não os atingiu como ato de exceção de natureza política, mas como mero regulamento administrativo das prorrogações do Serviço Militar, do qual tinham prévio conhecimento”.

Paralelamente, em 2008, o Conselho Federal da OAB, que saiu em defesa dos militares em busca de anistia, entrou no Supremo Tribunal Federal com a ADPF 158, que nunca foi levada a plenário e, segundo a assessoria do STF, não tem previsão de ser julgada. A relatoria é do ministro Gilmar Mendes.

Processos estão estacionados na Comissão de Anistia

Três anos depois, em 2011, foi instituído Grupo de Trabalho Interministerial, com integrantes da Defesa, Justiça e AGU, para revisar os benefícios concedidos para alguns militares. No mesmo ano, o caso subiu para o STJ, que entendeu que a União não pode revogar anistias do grupo de cabos e condenou-a a "proceder o restabelecimento dos efeitos das portarias anistiadoras, em especial no que diz respeito à reparação econômica, cujo pagamento deve ser acrescido de correção monetária". Recomeçou, então, a publicação das portarias e a restituição dos pagamentos aos militares.

Em meio à guerra de pareceres na Justiça, os processos dos cabos estão parados na Comissão de Anistia. O presidente Paulo Abrão disse que o estado não pode ter uma conduta ambígua e que não ficará no meio do fogo cruzado:

— Depois que houve esse questionamento inclusive por parte da AGU e no Supremo, a Comissão de Anistia parou de julgar esses processos que faltavam. O que adiantaria ela declarar o direito para imediatamente ser anulado pelo grupo interministerial? O estado não pode ter uma conduta ambígua – disse.

De acordo com dados da própria comissão, um levantamento inicial mostra que há pelo menos 616 processos de cabos da FAB parados. Há um total de 2.663 processos de militares em tramitação na comissão. Mais da metade são relativos à Aeronáutica, 1.179 deles.

O Ministério da Defesa, órgão pagador das indenizações militares desembolsou, em média, R$ 285 milhões por ano com o pagamento dos benefícios a militares anistiados entre 2003 e 2013. Nesses 10 anos, a Defesa pagou o total de R$ 3,134 bilhões. Até o ano passado, informaram, foram anistiados 4.162 militares, sendo 584 oficiais e 3.578 praças.

Outro militar que integra a categoria dos desanistiados é Océlio Ferreira, que entrou em 1968, hoje tesoureiro da Associação Democrática e Nacionalista dos Militares (Adnam), que era presidida pelo brigadeiro Rui Moreira Lima. Sua portaria valeu por sete anos, mas ele teve o processo arquivado em 2007.

— Fiquei recebendo por quatro anos, mas a Aeronáutica não reconhecia isso, pagava um mês, no outro não. Mandaram arquivar o meu processo em 2007. Fomos à OAB de Brasília e criaram a ADPF 158, que continua de molho. Nosso desespero é pelo julgamento da ADPF 158, um julgamento justo, não político. A 1.104 foi uma portaria preguiçosa, todo mundo foi atingido por ela. Os cabos nunca conseguiram ser anistiados, na Marinha e no Exército eles foram.

Para Paulo Abrão, a disputa entre militares atingidos pela Portaria e a cúpula das Forças Armadas não é uma questão financeira, mas ideológica. E que não tem data para acabar:

— Isso não é uma questão já encerrada, ainda pode durar anos e anos. Você não pode financeirizar (sic) direitos, essa discussão é incabível. Mas, se você perguntar se o que eventualmente pode ter motivado o ministério da Defesa possa ser uma análise econômica, eu acho que a motivação não tem cunho econômico, e sim cunho político e ideológico.

Fonte: Globo.com/Pais

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Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Vítima da Portaria 1.104GM3/64
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