RELATÓRIO
A Senhora Ministra Rosa Weber (Relatora):
1 . Contra a decisão monocrática por mim proferida, pela qual, forte nos arts. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/1999 e 21, § 1º, do RISTF, neguei seguimento à arguição de descumprimento de preceito fundamental ( edoc. 27) , por ausência de observância ao requisito da subsidiariedade, a autora interpôs agravo regimental ( edoc. 28 ).
Nas razões recursais invoca, em síntese, dois fundamentos principais para a reforma da decisão monocrática. No primeiro, defende que o entendimento deste Supremo Tribunal Federal sobre o requisito da subsidiariedade foi formado no sentido de que a ADPF é cabível quando não houver outro meio apto a sanar a lesividade de maneira rápida, imediata e eficaz, o que seria o caso dos autos.
No segundo fundamento, assinala a observância do requisito da subsidiariedade, porquanto o ato administrativo impugnado, consistente na Portaria nº 1.104/GM3, de 12.10.1964 – editada pelo Ministério da Aeronáutica –, foi praticado no período de 12.10.1964 a 18.11.1982, ou seja, tempo anterior à Constituição Federal. Desse modo, por se tratar de ato normativo pré-constitucional, o controle jurisdicional deve se dar por meio da arguição de descumprimento de preceito fundamental, conforme art. 1º, parágrafo único, I, da Lei nº 9.882/1999, e não por via controle jurisdicional difuso.
Para ilustrar o argumento, transcrevo: “ Os termos do art. 1ª, § único, I, da Lei 9.882/99 garante ao Direito Pré – Constitucional ser examinado pela via processual constitucional e os requisitos da arguição de descumprimento de preceito fundamental instituída na forma da lei supra. Desta maneira vale dizer que o o recurso extraordinário não é a via recursal apta a analisar o Direito Pré – Constitucional .” (…) “ Aplicar o Recurso Extraordinário em matéria expressa em lei que disciplinou a arguição de preceito fundamental a possibilidade de exame da compatibilidade do direito pré-constitucional com a norma da Constituição da República configura violação à Lei, e o ato constitui uma afronta aos próprios direitos fundamentais e desrespeito ao princípio constitucional da legalidade. Ainda, que o referido recurso estiver, supostamente, sob a fundamentação 2 da repercussão geral, não cabe a aplicação deste. Como é notório ao direito pré-constitucional é reservado um processo objetivo, conforme reserva legal instituída no art. 1º, § 1º da Lei 9.882/99 ”.
2 . Requer a reconsideração da decisão monocrática. Sucessivamente, pede o provimento do agravo regimental para dar prosseguimento ao desenvolvimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, com o acolhimento dos pedidos formulados.
Relatados os elementos argumentativos da fase recursal.
VOTO
A Senhora Ministra Rosa Weber (Relatora):
1 . Publicada a decisão agravada, proferida por mim, Relatora deste processo, no DJe de 05.8.2020, a interposição do agravo regimental em 11.8.2020 observa o prazo recursal.
2 . Preenchidos os pressupostos genéricos, conheço do agravo regimental e passo ao exame do mérito recursal.
3 . Para a adequada compreensão da controvérsia recursal, transcrevo o teor da decisão objeto de impugnação:
“Vistos etc.
1 . Trata-se de arguição de descumprimento de preceito fundamental, com fundamento normativo nos arts. 102, §1º, e 103, IX, da Constituição Federal, ajuizada pela Associação Nacional dos ExCabos da Força Aérea Brasileira – ANECFAB – em face da Portaria n. 1.104 GM3, de 12 de outubro de 1964, editada pelo Ministro da Aeronáutica.
2 . De início, a parte autora justifica o cabimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental para a resolução da controvérsia constitucional identificada. Nessa quadra, alega configurados os requisitos legais (i) da existência de controvérsia constitucional relevante sobre a matéria, em razão da existência de decisões díspares sobre a matéria, (ii) o ato normativo editado pelo poder público, (iii) a identificação de preceitos fundamentais violados e (iv) a subsidiariedade na escolha da via processual eleita.
3 . Ao argumento da existência de interpretações divergentes acerca da Portaria nº 1.104/1964, para efeitos de concessão de anistia aos atingidos pelo referido ato normativo, sustenta a violação de preceitos fundamentais, a saber, “a dignidade da pessoa humana, a segurança jurídica, a coisa julgada com reflexo perigoso na saúde dos que compõe a classe com idade superior a 68 anos como também na de seus familiares”.
(…)
10. Requer seja reconhecido que a Portaria n° 1.104GM3, de 12 de outubro de 1964, editada pelo Ministro da Aeronáutica, foi um ato público em desconformidade com a legislação militar e com as Constituições Federais de 1946 e 1967.
11 . Pede a concessão dos benefícios da gratuidade processual, com base no art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal, e no art. 4º da Lei nº 1.060/50, com a redação introduzida pela Lei nº 7.510/86, à alegação de que a requerente é uma associação desprovida de qualquer fim lucrativo e não possui patrimônio, conforme provado por sua declaração anual de imposto de renda. Relatados os principais elementos argumentativos do processo, decido. Do Cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
12 . O art. 4º, caput, da Lei nº 9.882/1999 autoriza o relator a indeferir liminarmente a petição inicial “quando não for o caso de arguição de descumprimento de preceito fundamental”. Já o § 1º desse dispositivo é expresso ao assentar que “não será admitida arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade”. Isso porque a arguição de descumprimento de preceito fundamental desempenha, no conjunto dos mecanismos de proteção da ordem constitucional, específica e excepcional função de evitar, à falta de outro meio efetivo para tanto, a perenização no ordenamento jurídico de comportamentos estatais – de natureza normativa, administrativa e jurisdicional – contrários a um identificável núcleo de preceitos – princípios e regras – tidos como sustentáculos da ordem constitucional estabelecida.
13. Observo, nesse sentido, que o descumprimento de preceito fundamental acionador do mecanismo de defesa objetiva da ordem constitucional (art. 102, §1°, CRFB) se manifesta na contrariedade às linhas estruturantes da Constituição, àquilo que, mesmo não identificado com esta ou aquela fração do texto positivado, é reconhecido como elemento material da ordem constitucional. Pilares de sustentação, explícitos ou implícitos, sem os quais a ordem jurídica delineada pelo Poder Constituinte, seja ele originário ou derivado, ficaria desfigurada na sua própria identidade. Desse modo, não viabiliza, a dinâmica jurídico-constitucional, o uso desmedido da ADPF enquanto singular instrumento de proteção da ordem constitucional.
14 . Se, de um lado, o art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/1999 não descura do caráter objetivo e abstrato da ADPF, a emprestar-lhe efeito vinculante e erga omnes, de outro, tampouco a antepõe a todo o sistema difuso de tutela dos direitos subjetivos de índole constitucional. O preceito comporta interpretação que legitima o Supremo Tribunal Federal a exercer, à vista do caso concreto, o juízo de admissibilidade, seja quando incabíveis os demais instrumentos de controle concentrado, seja quando constatada a insuficiência ou inefetividade da jurisdição subjetiva para afirmar a tutela da ordem constitucional de forma efetiva e imediata.
15 . Como sinaliza a jurisprudência consolidada desta Suprema Corte, não basta estarem à disposição processos ordinários ou mesmo a interposição de recurso extraordinário para afastar a utilidade da ADPF, impondo-se a efetividade do instrumento processual a ser acionado na tutela dos preceitos fundamentais. Nesse cenário normativo, no exame dos casos de feição objetiva é que se verificará a potencial efetividade da arguição de descumprimento de preceito fundamental como ação competente para dar tutela ao direito constitucional de forma ampla, geral e imediata, com o objetivo de evitar a frustração da tutela do preceito fundamental da segurança jurídica.
16 . O requisito de relevância trata, bem vistas as coisas, de juízo implícito de admissibilidade do pedido, como decidido nas ADPF 76 e na ADPF 33, ambas de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Nessa perspectiva, de feição dinâmica quanto à hipótese de cabimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, em conformidade com os precedentes citados, “seria possível admitir, em tese, a propositura de ADPF diretamente contra ato do poder público, nas hipóteses em que, em razão da relevância da matéria, a adoção da via ordinária acarrete danos de difícil reparação à ordem jurídica”.
17 . Explicitada a premissa normativa quanto à admissibilidade e manejo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, passo a analisar o contexto da controvérsia constitucional em jogo.
18 . Pretende a autora com o ajuizamento da presente ação constitucional “dirimir a controvérsia se a Portaria é ato de exceção de natureza política aplicada a partir de 12/10/1964 à 18/11/1982, ou seja, se foi um ato sem amparo legal, tanto constitucional como infraconstitucional.” Com relação ao ponto da controvérsia, transcrevo importante argumento sustentado na narrativa inicial: “As divergências e propósitos diferentes de Governos da União estabelecendo revisões da concessão da anistia a exemplo da Portaria nº 594/MJ, de 12/02/2004 e da Portaria Interministerial nº 134, de 15/02/2011, entre os julgamentos da Comissão de Anistia e as Notas da AGU, e mais recentemente as alegações do Ministério Público Federal expostas no RE nº 817.338, onde pauta o questionamento da Portaria nº 1.104GM3/64 quanto aos seus efeitos, com julgamento ocorrido em 09/10/2019, ainda não transitado e julgado.”
19 . Como afirmado pela própria parte autora, na inicial, a questão da validade constitucional da Portaria n. 1.104GM3, de 12 de outubro de 1964, foi objeto de deliberação e decisão deste Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 817.338, com repercussão geral reconhecida, em 16.10.2019. Na oportunidade, após discussão das abordagens argumentativas desenhadas pela autora, por decisão majoritária (e integrei a corrente minoritária), o Plenário desta Suprema Corte julgou constitucional a possibilidade de revogação das anistias concedidas a cabos da aeronáutica atingidos por portaria do ministro da Aeronáutica que, em 1964, estabelecera prazo máximo de permanência em serviço para cabos não concursados. Ficaram asseguradas aos anistiados a defesa administrativa e a não devolução das verbas recebidas de boa-fé. A interpretação jurídica subjacente à decisão formulou razão de decidir no sentido de que o decurso do prazo decadencial de cinco anos não é obstáculo para que a administração pública reveja atos que preservem situações inconstitucionais. Ademais, definiu-se que a aludida Portaria, em essência, não constitui ato de exceção, sendo necessário, para tanto, na análise de cada caso individual, a comprovação da existência de motivação político-ideológica para a exclusão das Forças Armadas, único motivo justificador da concessão de anistia. Para explicitar melhor os limites da decisão e sua justificativa, o Tribunal fixou a seguinte tese jurídica: “No exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104 /1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas”.
20 . A decisão tomada no referido recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, resolveu a questão da validade constitucional da Portaria n. 1.104GM3, de 1964, no âmbito da jurisdição constitucional de perfil difuso, com autoridade normativa de precedente judicial obrigatório. Ou seja, a solução do problema jurídico-constitucional posto nesta ação constitucional eliminou os cenários decisórios divergentes, como posto pela autora. O recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida tem efeitos decisórios convergentes com aqueles atribuídos às ações de controle concentrado. Esse fato jurídico descaracteriza o requisito da subsidiariedade, bem como a natureza de potencial ato lesivo do Poder Público, porquanto atribuída interpretação constitucional válida a este, ainda que não tenha ocorrido o seu trânsito em julgado. Qualquer esclarecimento acerca do conteúdo decisório deve ser feito no espaço do RE 817338. Cumpre registrar, nessa linha decisória, acórdão proferido na ADPF 158 AgR, DJ 30.1.2015, relatoria do Ministro Gilmar Mendes, que não conheceu da ação por ausência de subsidiariedade e existência de coisa julgada acerca da questão da interpretação dada aos artigos 1º, 16 e 17 da Lei n. 10.559/2002, que regulamenta o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Entendeu-se, forte nas manifestações juntadas pela Procuradoria-Geral da República, que, no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, a questão obteve resposta jurisdicional, por meio de decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
21. Não configurada situação concreta de contexto jurisdicional conflitante apta a qualificar a controvérsia constitucional como relevante, nos termos do art. 3º, V, da Lei 9.882/99, que prescreve, como requisito da petição inicial, “a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado”, para satisfazer a exigência do postulado da subsidiariedade. Portanto, incabível a presente arguição de descumprimento de preceito fundamental, a teor do art. 1º, caput e parágrafo único, I, da Lei 9.882/1999, uma vez que a pretensão nela deduzida não se amolda à via processual objetiva eleita.
Conclusão
21. Ante o exposto, forte no 4º, caput e I da Lei nº 9.882/1999 e 21, §1º, do RISTF, nego seguimento à presente arguição de descumprimento de preceito fundamental.
4 . Como justificado na decisão monocrática, a questão da validade constitucional da Portaria nº 1.104/GM3, de 12 de outubro de 1964, foi objeto de deliberação e decisão deste Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 817.338, com repercussão geral reconhecida, em 16.10.2019. A decisão tomada no referido recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, resolveu a questão da validade constitucional da Portaria nº 1.104/1964/GM3, no âmbito da jurisdição constitucional de perfil difuso, com autoridade normativa de precedente judicial obrigatório. Mais especificamente, solucionou o problema jurídico-constitucional posto nesta ação constitucional, de modo a eliminar os cenários decisórios divergentes, como posto pela autora na narrativa inicial.
5 . Não configurada, portanto, situação concreta de contexto jurisdicional conflitante apta a qualificar a controvérsia constitucional como relevante, nos termos do art. 3º, V, da Lei nº 9.882/1999, que prescreve, como requisito da petição inicial, “ a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado ”, para satisfazer a exigência do postulado da subsidiariedade.
6 . O argumento recursal de que direito pré-constitucional apenas pode ser impugnado pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental não subsiste. A interpretação que se infere do desenho institucional do controle jurisdicional de constitucionalidade dos atos normativos é de que, no cenário do perfil de controle abstrato, apenas é possível veicular questionamento de ato pré-constitucional no âmbito da ADPF, conforme art. 1º, caput , parágrafo único, I, da Lei nº 9.882/1999. Todavia, esse veículo de impugnação não afasta, em absoluto, a possibilidade de se arguir perante qualquer juiz, à vista dos casos concretos levados para apreciação do Poder Judiciário, por meio do controle difuso incidental, a validade jurídica dos atos normativos anteriores à Constituição Federal de 1988, cuja solução ocorrerá a partir da aplicação dos critérios interpretativos adequados.
7 . Nesse contexto, a decisão ora impugnada está em conformidade com os precedentes judiciais definidos por este Supremo Tribunal Federal, motivo pelo qual impõe-se sua manutenção.
Agravo regimental conhecido e não provido .
É como voto
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OO O
Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
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