De: Silva Filho, O J <ojsilvafilho@gmail.com>
Enviada em: segunda-feira, 13 de julho de 2020 02:20
Para: (…); asane@asane.org.br; asane2002@gmail.com; (…)
Assunto: Parecer para OAB

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Comissão Nacional de Estudos Constitucionais

Processo n. 49.0000.2020.003796-4

Requerimento de Ação Direta de Inconstitucionalidade

Dispositivo objeto de discussão: Portarias nº 1.266 a 1.579 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

 

 

P A R E C E R

1. Trata-se de parecer requerido pelo CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL, sobre o PROCESSO N. 49.0000.2020.003796-4/COMISSÃO NACIONAL DE ESTUDOS CONSTITUCIONAIS, para análise das Portarias nº 1.266 a 1.579 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, publicadas no Diário Oficial da União em 5 de junho de 2020, que tratam da anulação de portarias declaratórias de anistiados políticos.

2. As cerca de 300 portarias questionadas pelo consulente anularam portarias dos anos 2002-2005 que declaravam a anistia política de uma série de cabos da Aeronáutica que haviam sido afastados no início do regime militar por força da Portaria nº 1.104/64. As portarias em exame destacaram que, diferentemente do que se pensava anteriormente, não houve comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo da anistia. Ficou, no entanto, assegurada a não devolução das verbas indenizatórias percebidas pelos até então anistiados.

3. É possível definir duas frentes para avaliar a constitucionalidade da medida adotada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) para rever as declarações de anistia anuladas pelas Portarias nº 1.266 a 1.579: (i) o modo (procedimento) de revisão do ato administrativo prévio, naquilo que se refere ao caminho adotado pela Administração para concluir pela necessidade de anulação das portarias anteriores; e (ii) (ii) a matéria propriamente dita das portarias em discussão, naquilo que diz respeito à anulação indistinta das anistias concedidas aos cabos atingidos pela Portaria nº 1.104/64. É verdade que a forma procedimental adotada pelo MMFDH para anular as declarações de anistia também está invariavelmente conectada com o próprio substrato que lhe sustenta, mas é didática e esclarecedora a separação da questão em dois planos, como se verá.

4. Um breve histórico da situação é necessário para enfrentar tais questões: a Portaria nº 1.104-GM3, que alterou a Portaria nº 570/54-GM3, foi publicada em outubro de 1964 pelo então Ministério da Aeronáutica, limitando em oito anos a permanência dos cabos nesta mesma graduação; após isso, seriam eles licenciados caso não estivessem em vias de ingressar nos quadros de carreira, por meio de concurso público. A suposta razão de ser da portaria gravitava em torno da necessidade da gradual diminuição do efetivo, pois, segundo o órgão militar, havia uma distorção na pirâmide hierárquica – o número de cabos era praticamente o mesmo que o de soldados, gerando problemas administrativos e orçamentários.

5. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, veio a previsão da concessão de anistia, nos termos do art. 8º do ADCT, para aqueles que tivessem sido (i) atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, (ii) abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961; ou (iii) atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969. O Regulamento desse dispositivo constitucional foi editado, inicialmente, em agosto de 2001, por meio da Medida Provisória nº 2.151-3, que foi posteriormente convertida na Lei nº 10.559, em novembro de 2012, a partir das quais foi criada a Comissão de Anistia, com a finalidade principal de examinar os requerimentos de anistia (art. 12).

6. Passou-se a verificar, então, um crescente número de requerimentos dos ex-cabos da FAB que haviam sido atingidos pela Portaria nº 1.104-GM3, ato que, na sua visão sobre seus casos particulares, estava eivado de motivação exclusivamente política. Nesse sentido, com o objetivo de imprimir celeridade na condução desses casos, o então presidente da Comissão submeteu ao Plenário a matéria, gerando a Súmula Administrativa nº 2002.07.0003, assim redigida: “A Portaria nº 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política”.

7. O debate em torno da formulação desse entendimento, à época, envolveu sobretudo a investigação sobre a intenção administrativa ao expedir a respectiva Portaria. Os trabalhos que conduziram à edição da súmula consideraram que o ato administrativo foi baixado em virtude de os cabos terem predominantemente uma orientação de apoio ao governo deposto. Assim, constatada essa “tendência subversiva”1, era possível depreender que a Portaria era motivada pela necessidade de se evitar a formação de lideranças na categoria (logo, ato de motivação exclusivamente política, nos ditames da Constituição). Seguiu-se a esse entendimento a concessão de milhares de anistias a ex-cabos da Aeronáutica.

8. Apesar dessa súmula, a discussão nunca cessou dentro da própria estrutura do executivo federal. Continuaram existindo debates e pareceres na Administração Pública para reavaliação e modificação da posição sumular. Em 2004, o então Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, determinou a instauração de 495 processos2 de anulação de anistia política, principalmente porque se compreendeu que os cabos que haviam ingressado na FAB depois da edição da Portaria nº 1.104-GM3 não poderiam argumentar que haviam sido atingidos por um ato de exceção: eles já haviam ingressado na condição de cabos com as restrições impostas pela Portaria, ou seja, não havia como estender a motivação política do ato para aqueles que sequer faziam parte do quadro à época da sua edição. Houve a anulação de quase 500 portarias de anistia com base nesse fundamento.

9. Além disso, em 2003, e depois em 2006, a Advocacia-Geral da União, em resposta a dúvidas suscitadas pelo Ministério da Justiça sobre a legalidade e o alcance da Súmula Administrativa nº 2002.07.0003, expediu duas Notas Técnicas (AGU/JD-10/2003 e AGU/JD-1/20063), argumentando, em síntese, que o conteúdo da Portaria nº 1.104-GM3 não poderia ser considerado, abstrata e genericamente, como viciado ou com caráter de exceção de natureza exclusivamente política, pois o ato pretendia racionalizar o contingente da Aeronáutica. Para a AGU, dessarte, a Súmula havia retirado a análise detida e detalhada de caso a caso, o que seria condição de possibilidade para a adequada apreciação dos pedidos de anistia.4

10. Foi importante também neste contexto histórico a revisão iniciada em 2011 por um Grupo de Trabalho Interministerial de Revisão, a partir da Portaria Interministerial 134, composto por integrantes do Ministério da Justiça e da CGU, que deu continuidade às discussões no Executivo. O objetivo era reavaliar mais de 2,5 mil processos administrativos de concessão, mas, paulatinamente, com a judicialização dos casos cuja alteração parecia iminente e a prolação de decisões em sentido contrário, esvaziou-se a finalidade do grupo.

11. Em meio a isso é que se insere a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 817.338/DF, no âmbito do Tema 839, em que foi firmada a seguinte tese no julgamento de 16 de outubro de 2019: No exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104/1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas.

12. O leading case que conduziu à formulação da tese dizia respeito exatamente à situação da anulação de anistia concedida a ex-cabo da Aeronáutica após a criação do referido Grupo de Trabalho. Nos termos do voto do Relator, ministro Dias Toffoli, formou-se maioria de 6 a 5 no STF, cuja argumentação jurídica, lato sensu, girou em torno de três pontos fundamentais: (i) diferentemente do que vinha sendo sustentado em tribunais inferiores, não há decadência em casos como estes, em que há “inequívoca” inconstitucionalidade no ato de declaração da condição de anistiado; (ii) a Portaria nº 1.104/64 não constitui ato de exceção por si só, exigindo-se a análise de caso a caso para que se alcance a conclusão acerca da motivação política; e, portanto, (iii) os atos declaratórios de anistia poderiam ser revistos a partir da efetiva observância do devido processo legal.

13. Logo antes desse entendimento do STF, a Comissão de Anistia, em 7 de outubro de 2019, já havia editado enunciado que afastava a simples aplicação da Portaria nº 1.104-GM3 como suficiente para o reconhecimento da anistia política.5 Daí por que, firmada a tese acima citada, foi rapidamente determinada a realização de procedimento de revisão das anistias concedidas com base naquela Portaria, a partir da Portaria nº 3.076, de 16 de dezembro de 2019, do MMFDH, cujo resultado foram as quase 300 portarias (Portarias nº 1.266 a 1.579) questionadas pelo consulente.

14. Superada essa problematização histórica, fundamental para compreensão do tema em análise, pode-se avançar para as razões da solução a ser proposta neste parecer.

15. Em primeiro lugar, há um vício procedimental evidente no caso de todas as portarias em questão. Note-se que o entendimento do STF é de outubro de 2019, o que conduziu à Portaria nº 3.076 em dezembro de 2019 e, ao fim e ao cabo, à edição das Portarias nº 1.266 a 1.579 no início de junho de 2020. As decisões foram tomadas a partir de Notas Técnicas expedidas em cada um dos requerimentos de anistia individuais, e tudo isso se deu em aproximadamente seis meses. Parece estar claro que o devido processo legal amparado em processo administrativo, preconizado pelo STF na própria tese do Tema 839, não foi devidamente assegurado aos atingidos6 ou, naqueles casos em que os ex-cabos já faleceram, aos seus familiares.

16. Em consulta ao sistema SINCA7, elaborado para consulta de processos administrativos de anistia, consta – no que toca aos processos acessados por este parecerista – diversas movimentações meramente administrativas, como remessa entre setores ou levantamento de sobrestamento. A notificação dos ex-cabos abrangidos pelas novas portarias passou ao largo da Comissão de Anistia, em afronta às normas que concretizam o devido processo legal.

17. Veja-se que a situação é insustentável juridicamente: muitos anos depois (15 anos, mais ou menos) dos ex-cabos terem a anistia declarada, com todos os efeitos políticos, econômicos, previdenciários que a envolvem, o que somente foi possível ao se submeterem ao respectivo processo administrativo de apuração do seu caso, o MMFDH, por meio de uma portaria baseada em uma revisão interna, sem comunicação aos envolvidos, resolveu retirar-lhes a condição de anistiados, como que “de surpresa” – de todo modo, não surpreende a velocidade com que esses casos foram tratados, ainda mais em tempos de negacionismo histórico (e epistêmico) sobre os terrores e as misérias vivenciados no período militar. Uma análise constitucional adequada demonstra a fragilidade jurídica das portarias questionadas, conforme passo a expor.

18. O devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, da CF) é uma das mais amplas e relevantes garantias do direito constitucional. Em um Estado Democrático de Direito, o devido processo legal é umas principais proteções conferidas ao indivíduo contra o arbítrio do Estado e de terceiros, pois, em essência, assegura a observância de regras procedimentais previamente estabelecidas e viabiliza a concretização da ampla defesa efetiva. Nesse panorama, a extensão das garantias processuais – que são direitos fundamentais – não está à disposição para negociação, muito menos para rejeição/desconsideração na esfera de discussão da anistia, não obstante o caráter político a ela associado.

19. O processo administrativo, cuja proteção constitucional se encontra no próprio devido processo legal, ainda que seja orientado por traços mais informais do que o conhecido processo judicial, não é um terreno livre para arbitrariedades. Esse regramento diferenciado do processo administrativo não significa que ideias básicas em um Estado Democrático de Direito, como (i) a devida comunicação dos atos administrativos aos interessados, (ii) a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados e (iii) a garantia da apresentação de alegações e de produção de provas, possam ser postas de lado em prol de um novo entendimento (político) acerca dos ex-cabos da Aeronáutica.

20. Nesse quadro, uma atividade administrativa ética e de boa-fé é condição de possibilidade para preservação dos direitos e das garantias fundamentais dos anistiados. Afinal, o cidadão está sendo privado de direitos de que gozava há mais de década, sustentados em um processo administrativo prévio e alinhados a uma posição firmada na Comissão de Anistia que deu origem à Súmula Administrativa nº 2002.07.0003. Tomar de sobressalto esse mesmo cidadão (ou seus familiares) por meio de portarias que não estão amparadas em um diálogo processual prévio é afrontar a segurança e previsibilidade jurídicas que balizam o nosso Estado.

21. Processo (administrativo) é garantia, não um simples meio para alcançar um resultado já previamente estabelecido na Administração Pública. Caso contrário, nem mesmo haveria razão para existir previsões normativas infraconstitucionais dessa natureza, que estabelecem um procedimento legal específico (procedural due process) a partir de um catálogo de direitos e garantias fundamentais (substantive due process).

22. As portarias questionadas esvaziaram o devido processo legal ao ignorarem critérios decorrentes da principiologia constitucional. Não é democrática uma decisão administrativa que retira (importantes) direitos há anos concretizados sem ouvir o administrado ou permitir-lhe a produção de provas. Essa é uma dimensão inarredável do devido processo legal, que só pode ser concretizado na medida em que os atos decisórios são antecedidos por um contraditório efetivo, assegurada a defesa ao administrado.

23. Os anistiados já se encontravam nessa situação jurídica há uns bons anos, e deveria ser natural que, ao se retomarem os seus casos, se lhes garantisse a possibilidade de demonstrar, a partir de quaisquer meios de prova possíveis, que a decisão originária havia sido acertada. Isso evitaria ainda mais trabalho para a Administração: em vez de ter de enfrentar um recurso administrativo, talvez com revisão do ato anterior para oportunizar a produção de provas, ou mesmo um novo requerimento administrativo com novos elementos probatórios, seria mais eficiente – já que é isso que se busca tanto hoje em dia – permitir aos anistiados tudo isso antes de publicar portarias anulatórias de modo precipitado. Veja-se aqui também a violação do princípio da eficiência. É manifesta a “fuga” dos casos concretos por parte da Administração ao tomar decisões genéricas como essas, como se fosse possível tratar de casos particulares em conjunto por meio de um simples ponto em comum.8

24. Toda essa situação das portarias, inclusive, gera um problema de grave insegurança que se projeta para o futuro: a qualquer momento, alterada a composição da Comissão de Anistia e modificado o seu entendimento sobre a matéria, podem os direitos dos anistiados ser afastados sem que eles possam sequer se defender. O direito ao devido processo legal passa a depender do pedido do administrado que, provavelmente, terá de judicializar a matéria pela simples razão de que a Administração lhe negou o regular trâmite de um processo administrativo.

25. O substantive due process, para além de uma simples normatividade acerca dos procedimentos aplicáveis ao processo, exige a observância de garantias como contraditório e ampla defesa e se destina aos três poderes do Estado, seja no momento de elaboração das leis ou de sua interpretação, seja no momento de sua execução (funções legislativa, jurisdicional e executiva). É totalmente equivocado – e irresponsável – por parte da Administração não observar parâmetros processuais, como se coubesse agora aos ex-anistiados buscar a prestação jurisdicional.

26. Na verdade, como bem diz Dworkin, aplicar o Direito é uma questão de princípio e não de argumentos de política, economia ou moral. E o devido processo legal é uma garantia a ser usada contra argumentos despistadores violadores do Direito e dos direitos vistos como trunfos.9

27. Não foi por outras razões que o STF assentou, no Recurso Extraordinário 817.338/DF, no âmbito do Tema 839, que o devido processo legal deveria ser assegurado ao anistiado por meio de procedimento administrativo. E esse procedimento administrativo não é uma série de atos meramente internos da Administração Pública, ou seja, não basta alterar o entendimento sobre a Portaria nº 1.104-GM3, encontrar aqueles casos que se enquadram no entendimento anterior da Súmula, e simplesmente expedir centenas de portarias anulando as pretéritas. Na verdade – e a decisão do ministro relator aponta nessa linha –, tudo aquilo que a Lei 9.784/99 (Lei do Processo Administrativo na Administração Pública Federal) estatui relativo à ampla defesa e ao contraditório deveria ter sido observado, sob pena de ser írrita qualquer tentativa de supressão de direitos.

28. Vale citar aqui o próprio Regimento Interno da Comissão de Anistia (Portaria nº 376, de 27 de março de 2019), que, no seu Capítulo IV (Do Procedimento Administrativo), art. 17, caput, prevê que o requerimento de declaração de anistia deve conter a narrativa dos fatos e os meios de prova das alegações. Não há previsão do procedimento de anulação de anistia pretérita, mas é possível traçar uma analogia com as regras do requerimento de declaração: sob um filtro constitucional, compatibiliza-se essas disposições ao se compreender que a Administração deveria ter oportunizado ao interessado a apresentação de novas alegações e novos pedidos de provas, sem os quais não há concretização do devido processo legal. É falacioso imaginar que, na falta dessas orientações no Regimento Interno, poderia o MMFDH adotar um procedimento secreto e nebuloso.

29. Não se conhece a ocorrência de sessões de julgamento do colegiado da Comissão de Anistia com relação aos casos em questão, nem foram publicizados os fundamentos que levaram os conselheiros do Conselho da Comissão a decidir como decidiram – se é que decidiram. A ausência disso é uma patente inobservância dos arts. 20, § 2º, e 27 do Regimento Interno.10

30. Essas constatações demonstram que, em Direito – e devemos insistir nisso – as decisões devem se pautar por princípio. Ainda que a anulação de anistias seja com certeza mais fácil e célere a partir de um procedimento de apuração interno, sem interlocução com o administrado, ela fragiliza sobremaneira a proteção da condição de anistiados dos ex-cabos. Diminui-se a extensão da garantia constitucional do devido processo legal11 ao suprimirem-se o contraditório e a ampla defesa no momento da decisão, mesmo que administrativa. Generalizou-se a decisão para todos os anistiados cuja decisão estava baseada na Súmula Administrativa, sem se atentar para o caso concreto. Uma consequência previsível disso tudo será a judicialização – possivelmente individual – dessas decisões arbitrárias, o que poderia ser evitado a partir da observância dos preceitos legais e constitucionais.

31. Em segundo lugar, avanço em direção à matéria propriamente dita das portarias em discussão, atinente à revisão do entendimento sobre o caráter político da Portaria nº 1.104-GM3. Não se nega aqui o valor do trabalho da Administração Pública de contínua análise e levantamento de informações sobre período tão autoritário na história do Brasil: falar do velho é conservar vivas as possibilidades do novo. Mostra-se errado, no entanto, que a Administração, a partir de uma pretensa compreensão – e malfeita – da decisão do STF nos autos do Recurso Extraordinário 817.338/DF, tenha simplesmente revisado tantas anistias previamente declaradas. Ao que parece, o MMFDH entendeu que a decisão da Suprema Corte rejeitou toda possibilidade de a mencionada Portaria representar perseguição política.12

32. Da leitura da decisão13– o que se depreende, aliás, da própria tese firmada –, verifica-se que, embora a Portaria nº 1.104/64 tenha sido objeto do debate, entendeu a maioria formada que ela não poderia servir por si só como motivo suficiente para configuração do ato de exceção de cariz político exigido para anistia: é necessária a análise de caso a caso, o que, inclusive, está de acordo com a jurisprudência do próprio STF.14 Nesse ponto, ainda que tenha afirmado o STF que os atos administrativos que declararam os ex-cabos anistiados políticos não sejam passíveis de convalidação no tempo – caso verificada alguma inconstitucionalidade –, não foi dito – muito menos ficou assentado – que os ex-cabos que estivessem nessa situação estariam passíveis de ter sua anistia anulada sem a devida investigação probatória.

33. O problema aqui é a guinada de cento e oitenta graus em relação à época de edição da Súmula Administrativa nº 2002.07.0003: passou-se de um entendimento que a todos garantia a anistia em razão da Portaria nº 1.104-GM3 para um entendimento de que ninguém que tivesse sido licenciado por força dessa Portaria faz jus à condição de anistiado. Tudo ou nada. Isso está em consonância com uma época em que cada vez mais se cortam benefícios sociais, mas não há dúvida que não pode ser assim, e o STF foi claro nisso.

34. Conforme art. 2º, XI, da Lei nº 10.559/02 (Regulamento da Anistia), é possível a declaração de anistia política daqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, foram licenciados ou compelidos ao afastamento de suas atividades remuneradas por motivação exclusivamente política. É nisso que se baseiam os ex-cabos da Aeronáutica para obterem as suas respectivas condições de anistiados. A discussão não pode ser simplificada a ponto de dizer que nenhum daqueles que foram afastados em virtude da Portaria nº 1.104-GM3 faz jus à declaração de anistia. Aliás, quem tem de provar isso é a Administração. Como já citado anteriormente, o Ofício Reservado nº 04, de 4/9/1964,15 e o Boletim Reservado nº 21, de 11/5/1965, trazem fortes indícios de que havia relevante motivação política na licença de cabos da FAB.

35. Nesse panorama, o modo açodado como foi tratada a questão por meio das Portarias questionadas só faz demonstrar que o aspecto material que sustenta as decisões da ministra não foi devidamente examinado no âmbito administrativo. Há grande probabilidade de que haja muitos fatos e provas que poderiam corroborar a anistia inicialmente concedida que não foram devidamente apreciados. Isso não quer dizer que não possa haver anistias que tenham sido erroneamente declaradas em favor de ex-cabos, mas (i) não se sabem os motivos que permitiram a conclusão de que as razões para concessão das anistias eram falsas – o que, ante todos os documentos que se conhece sobre a situação, deveria caminhar no sentido oposto – e (ii ) isso representa uma “aplicação” equivocada da decisão do STF, que não rechaçou a possibilidade de a Portaria nº 1.104-GM3 guardar relação com ato de exceção, desde que averiguado o caso concreto: o próprio Supremo Tribunal referiu a necessidade de comprovação da ausência de ato com motivação exclusivamente política, ônus que cabe à Administração Pública.

36. Em um outro aspecto, relacionado com este, ainda que isso pareça em desacordo com a tese firmada pelo STF no Recurso Extraordinário 817.338/DF, deve ser ressaltado, salvo a demonstração da inexistência de ato com motivação exclusivamente política nos casos individuais, que as declarações de anistia anuladas ocorreram em processo administrativo regular à época, com decisão fundamentada no entendimento sobre os fatos históricos naquele momento. A tentativa de sua alteração, por meio de uma nova interpretação sobre os temas, é ruim para a democracia, porque torna o sistema incoerente e autoriza a sua ampla relativização.

37. Existe uma verdade sobre todas as perseguições políticas que ocorreram no período ditatorial, e é muito perigoso que, após a consolidação de uma condição jurídica há mais de década, seja possível a revisão do ato em razão de alteração da conformação da Comissão de Anistia ou do respectivo Ministério. É compreensível a anulação de ato caso verificado, por exemplo, que determinado ex-cabo na verdade nunca foi cabo, em uma hipótese de erro de registro da Aeronáutica. No entanto, em princípio, não se trata desse tipo de caso; até onde se sabe, todos os casos das Portarias questionadas estão relacionados essencialmente com a discordância quanto aos fundamentos das decisões de 2002-2005. Essa tentativa de reescrever a história não pode ser considerada como um vício de legalidade16 que viabilize a anulação daquelas decisões. Assim como não se deve aplicar retroativamente interpretação de norma administrativa,17 não se deve(ria) permitir a aplicação retroativa de nova – e errada – interpretação dos fatos.

38. Essa nova visão sobre os fatos não deveria inquinar de inconstitucionalidade os atos de anistia até então vigentes, de sorte que, sim, deveria ser reconhecida a decadência administrativa. Não se conhece nem foi apresentado fundamento de má-fé dos ex-cabos, e há muito já se ultrapassaram os cinco anos de que dispõe a Administração para anulação dos seus próprios atos (art. 54 da Lei nº 9.784/99).

39. Há ainda outro aspecto a ser aduzido, como argumento secundário. Os prejudicados pelas Portarias de n. 1.266 a 1.579 foram objeto da Portaria 1.104/64, baixada no primeiro ano do regime militar, e responsável pelo afastamento dos cabos. São hoje todos idosos, segundo a lei. Assim, aplica-se ao caso em apreço a Lei n. 10.741/03 (Estatuto de Idoso). Em seu art. 10, existe a previsão de que é obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. Desta forma, além da previsão da necessidade de atenção aos princípios da ampla defesa, contraditório e segurança jurídica, os prejudicados são idosos e, portanto, protegidos pelo Estatuto do Idoso. Neste contexto, por certo, existem casos em que os prejudicados vivem da pensão paga em decorrência da anistia, sendo que a referida verba possui natureza alimentar! Portanto, mais um motivo para a retratação, com a consequente anulação das Portarias de n. 1.266 a 1.579 por parte do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

40. À luz de tudo o que foi dito, as Portarias nº 1.266 a 1.579, ao promoverem a anulação de cerca de 300 portarias de declaração de anistia dos anos 2002-2005, revelam-se inconstitucionais, porquanto não respeitaram o devido processo legal, não apresentaram razões materiais para anular as anistias e fazem uma reinterpretação de uma situação há muito consolidada. Eventuais concessões indevidas devem ser comprovadas caso a caso pela autoridade competente.

41. Diante do exposto, entende-se ilegais e inconstitucionais as Portarias nº 1.266 a 1.579 exaradas pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

É o parecer.

Porto Alegre, 11 de junho de 2020.


Lenio Luiz Streck
Pós-doutorado em Direito Constitucional (FDUL/Portugal)
Professor Titular dos Programas de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS e da UNESA
Membro Catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst)
Professor Emérito da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ)
Advogado – OAB/RS 14.439

Bibliografia

1 A Comissão de Anistia não se embasou meramente em possibilidades imaginárias para alcançar essa conclusão. O entendimento foi fundamentado na existência de comunicações secretas que comprovavam que os militares da FAB eram vistos como subversivos pela ditadura: isso poderia ser encontrado primeiro no Ofício Reservado 04, de setembro de 1964, e, posteriormente, no Boletim 21, de maio de 1965, ambos da Aeronáutica. Link para acesso ao Ofício Reservado 04: http://www.militarpos64.com.br/wp-content/uploads/2008/09/13oficio-reservado-nc2ba-04-de-04-de-setembro-de-1964-transcricao.pdf  (acesso em 11/6/2020). Link para acesso ao Boletim 21: https://www.militarpos64.com.br/wp-content/uploads/2008/09/14boletim-reservado-nc2ba-021-de-11051964-ipm-acafab-solucao-final-e-providencias-tomadas.pdf  (acesso em 11/6/2020).

2 Disponível no link: https://www.adusp.org.br/files/revistas/44/r44a13.pdf  (acesso em 11/6/2020).

3 Ambas as Notas Técnicas podem ser encontradas aqui (a segunda Nota foi transcrita no corpo da primeira): https://gvlima.files.wordpress.com/2011/04/nota-no-agu-jd-1-2006-23fev06.pdf (acesso em 11/6/2020).

4 Por meio do Ofício 678/2008 enviado ao Tribunal de Contas da União, o presidente da Comissão de Anistia à época, Paulo Abraão, defendeu a legalidade das anistias concedidas aos cabos: "Assim, a motivação exclusivamente política do licenciamento de diversos militares da Força Aérea Brasileira encontra-se na edição de algumas normas do período, considerando os fatos da época, tinham como motor a perseguição daqueles considerados suspeitos de práticas revolucionárias dentro da Aeronáutica, onde principalmente os Cabos se organizavam em instituições, às quais a de maior notoriedade foi a ACAFAB – Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira". Nessa mesma época a AGU se manifestou favorável à posição do Paulo Abraão: "Por isso, os focos de insurreição, supostamente identificados com o regime deposto, foram objeto de intensa perseguição. Os cabos amotinados no Rio de Janeiro, bem como os que tomaram o Aeroporto de Brasília, por  exemplo, teriam sido alvos da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, do Ministro da Aeronáutica"

5 Pode ser encontrado aqui: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/comissao-deanistia-1/Enunciado_1.pdf.  (acesso em 11/6/2020).

6 Não esqueçamos: A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. (Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já tiverem decorrido efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo. [Tese definida no RE 594.296, rel. min. Dias Toffoli, P, j. 21-9-2011, DJE 30 de 13-2-2012,Tema 138.]).

7 https://sinca.mj.gov.br/sinca/pages/externo/consultarProcessoAnistia.jsf (acesso em 11/6/2020).

8 É verdade que a aplicação da Súmula Administrativa no caso dos ex-cabos também é sintomática de uma tentativa de estandardização da aplicação do Direito no Brasil, como de há muito denuncio, em Verdade e Consenso (Saraiva, 2017), Jurisdição Constitucional (Forense, 2018) e Dicionário de Hermenêutica (2017 e 2020). Deferem-se direitos sem fundamentos adequados e retiram-se esses mesmos direitos com a mesma falta de cuidado. O problema é que não se deve corrigir um erro com outro erro e, já passado tanto tempo, é um desprezo com o cidadão agir como agiu o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos nesse caso.

9 Cf. DWORKIN, Ronald. Rights as trumps. In: WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford University, 1984, p.153-167.

10 Art. 20. Os requerimentos de anistia serão submetidos à análise do Conselho em ambiente presencial […] § 2º As sessões terão suas pautas previamente publicadas no Diário Oficial da União, no mínimo com 3 (três) dias úteis de antecedência e serão divulgadas no sítio eletrônico da Comissão de Anistia. Art. 27. Das deliberações do Conselho será lavrada ata, que deverá ser assinada por todos os conselheiros presentes na sessão.

11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

12 Conforme site do próprio Ministério, teria o STF rejeitado a possibilidade de tal interpretação. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/outubro/stf-acertouem-decisao-sobre-beneficios-a-ex-cabos-da-fab  (acesso em 11/6/2020).

13 Voto do relator: https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-toffoli-pedido-anistia-ex.pdf (acesso em 11/6/2020).

14 Cito, por todos: RMS/DF nº 25581 e RMS 25.692.

15 Item VI do Ofício Reservado nº 04: VI – O denominado “problema dos cabos” não decorre do número existente, porque este é o previsto nos Quadros de Distribuição de Pessoal (QDP), organizados pelo Estado-Maior e aprovado pelo Ministro. Também, nada há de ilegal no fato de haver cabos com muitos anos de serviço. Quando o número destes tende a aumentar, ou quando não há uma renovação contínua desses graduados é que surgem as pretensões descabidas. Há um interessante levantamento histórico sobre os fatos, feito pelo Dr. Alexandre Vasconcelos, que me foi facultado pela Comissão.

16 Lei nº 9.784/99: Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.

17 Lei nº 9.784/99: Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração. […] § 2o Para os fins desta Lei, consideram-se: XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

Boa sorte a todos e vamos em frente, com Fé…

Abcs/SF (81)

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OJSilvaFilho.
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
Email:
ojsilvafilho@gmail.com 

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Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
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