(…) a edição da Portaria nº 1.104/64 revela expresso contexto de expurgo, verdadeira limpeza na massa de militares, majoritariamente de Cabos, considerados subversivos pelo Comando da Aeronáutica. Extrai-se, portanto, que houve clara perseguição, com evidente motivação política, a uma categoria determinada. A perseguição à categoria dos Cabos gerou efeitos individuais para todos os Cabos que ingressaram na Aeronáutica antes e depois da edição da Portaria nº 1.104, em 12 de outubro de 1964. (…)


 

Cabos da FAB. Direito à Concessão de Anistia Política e Reparação Econômica.

Por Edward José da Silva

 

Como é sabido, a Comissão de Anistia possui sólida convicção, lastreada em vasto material probatório, quanto à perseguição política perpetrada contra os Cabos.

Esta convicção foi extraída em razão da análise de vários documentos sigilosos de produção do então Ministério da Aeronáutica. Estes documentos demonstram que a inteligência da Força Aérea Brasileira estava convencida do caráter subversivo dos Cabos e, por conseqüência, produziu um plano para expulsá-los da corporação, o que se concretizou com a edição, publicação e execução da Portaria nº 1.104/64, cuja convicção está edificada na Súmula Administrativa 2002.07.0003, da Comissão de Anistia, assim redigida:

A Portaria nº 1.104, de 12 de outubro de 1964, expedida pelo Senhor Ministro de Estado da Aeronáutica, é ato de exceção, de natureza exclusivamente política.

O então presidente da Comissão de Anistia, PAULO ABRÃO, através do Ofício nº 678/2008, enviado ao Tribunal de Contas da União, defendeu a legalidade das anistias concedidas aos Cabos da FAB, nos seguintes termos:

(…)

Assim, a motivação exclusivamente política do licenciamento de diversos militares da Força Aérea Brasileira encontra-se na edição de algumas normas do período, considerando os fatos da época, tinham como motor a perseguição daqueles considerados suspeitos de práticas revolucionárias dentro da Aeronáutica, onde principalmente os Cabos se organizavam em instituições, as quais a de maior notoriedade foi a ACAFAB – Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira. (…)

Este entendimento foi confirmado pela Nota AGU/CGU/ASMG 01/2011, que concordou expressamente com o caráter político da perseguição cometida contra os Cabos da FAB, nos seguintes temos:

Por isso, os focos de insurreição, supostamente identificados com o regime deposto, foram objeto de intensa perseguição. Os cabos amotinados no Rio de Janeiro, bem como os que tomaram o Aeroporto de Brasília, por exemplo, teriam sido alvos da Portaria nº 1.104-GM3, de 1964, do Ministro da Aeronáutica. (destacamos)

A motivação política da perseguição aos Cabos está provada através do Ofício Reservado nº 04, de setembro de 1964, editado pelo Estado-Maior da Aeronáutica, que assim registra:

(…)

Vários dos fatores anteriormente relacionados explicam até a recente tentativa de muitos em organizarem-se em Associações de caráter civil, para assim pleitearem, mais ao abrigo de sanções disciplinares, os benefícios legais que almejam valendo-se por instinto de políticos. Nesse caso ao mesmo tempo em que pleiteiam favores, ficam sujeitos à exploração de demagogos ou agitadores que pretendem cavar dissenções nas Forças Armadas, com incitamentos direitos ou indiretos à indisciplina para imobilizarem a ação dos chefes militares ou atrasarem-na, enquanto manobram para a posse do Poder. (…)

Como se vê, o então Ministério da Aeronáutica temia o potencial subversivo do movimento dos Cabos e, em razão disso, articulou, deu seguimento e executou à perseguição política aos Cabos, especialmente por meio da exclusão ou licenciamento dos Cabos de suas fileiras, fato que fica mais claro em razão do Boletim nº 21, de maio de 1965, que põe às claras a perseguição política aos cabos:

(…)

Neste Inquérito Policial Militar, instaurado por solicitação do Comando da Base Aérea de Santa Cruz, foram apuradas as atividades subversivas da entidade denominada ‘Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira’ (ACAFAB). Os fatos apurados atestam que a entidade: foi criada sem autorização do Ministério da Aeronáutica; vem utilizando indevidamente o nome da Força Aérea Brasileira; que sua Diretoria tomava parte ativa em reuniões em atividades subversivas; que desenvolvia atividades ilícitas, contrárias ao bem público e a própria segurança nacional; que, através de reuniões subversivas na entidade era tramada a deposição de ex-Presidente da República e seguidas, in totem, as teses contrárias ao regime, do então Deputado Leonel Brizola; que teve participação direta nos acontecimentos subversivos, que foram levados a efeito no Sindicato dos Metalúrgicos; 'A Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira', registrada sob esse título, contrariando as Autoridades do Ministério da Aeronáutica, deverá ter seu registro, como pessoa jurídica, cassado mediante AÇÃO JUDICIAL INTENTADA pelo Ministério da Aeronáutica; uma vez que essa denominação – 'DE CABOS DA FORÇA AÉREA BRASILEIRA' – envolve o nome da corporação e se presta a explorações políticas. É recomendável que sejam tomadas medidas para prevenir que se organizem outras entidades, de caráter tendencioso como a 'ACAFAB' e a 'CASA DOS CABOS DA AERONÁUTICA DE SÃO PAULO', associação de caráter civil organizada por graduados da Força Aérea Brasileira, que devem ser mantidas sob vigilância para evitar que se degenerem. Tendo ficado evidenciada no decorrer deste IPM a prática de transgressões disciplinares, face ao relatório fls. 574, usque 584, resolvo:

1º) Aplicar a punição de expulsão aos seguintes Cabos: (…);

Ainda, imponho a pena disciplinar de 30 (trinta) dias de prisão aos militares abaixo discriminados (… )

Determino, outrossim, a Diretoria Geral do Pessoal da Aeronáutica que atente com especial cautela para a conduta dos Cabos, cujos nomes constam das relações de fls. 35, 122 a 124, 126 a 140, 364 a 365. (destacamos)

Em assim sendo, os termos do Ofício Reservado nº 04 e do Boletim Reservado nº 21, não deixam dúvidas sobre a motivação exclusivamente política nas expulsões, desligamentos e licenciamentos ex officio dos Cabos, culminando com as edições das Portarias nº 1.103 e 1.104. A Portaria nº 1.103/64 determinou o afastamento de 11 Cabos identificados como os líderes do movimento subversivo no âmbito da FAB. Todavia, o comando da Aeronáutica não se contentou com a perseguição aos líderes dos Cabos. Com isto a perseguição foi estendida a toda a categoria, com a edição da Portaria 1.104/64. Nestes sentido, imprescindível citar, mais uma vez, os termos do Ofício 678/2008 do presidente da Comissão de Anistia:

Assim, não se pode deixar de ressaltar que as atividades exercidas pela Associação dos Cabos da Força Aérea Brasileira – ACAFAB, sem dúvida, representaram um grande obstáculo às autoridades militares golpistas, conforme se comprova pelos ofícios reservados citados acima, e em conseqüência a esta constatação a edição de uma norma (de estrutura formal, que apresentava em seu bojo amplos poderes de liberalidade o que lhe afastou o caráter discricionário) que desmobilizasse essa classe militar, foi certamente a opção considerada. […]

Sob este contexto, foi elaborada a Portaria nº 1.104/64, um dos elementos do conjunto de atos procedimentais realizados pela Força Singular, para operacionalizar o afastamento de todos aqueles aos quais não se conseguiu atingir por meio do inquérito policial que culminou na Portaria n° 1.103/64, de forma nominativa. (destacamos)

Aliás, o próprio ministro de Estado da Justiça, ao encaminhar ao presidente da República o projeto da Medida Provisória nº 2.151/2001, convertida na Lei 10.559/2002, se preocupou, na Exposição de Motivos 146/MJ, de 13 de abril de 2000, em explicitar a motivação política da Portaria nº 1.104/64, argumentando:

A Reparação Econômica em Prestação Permanente e Continuada é assegurada aos anistiados políticos demitidos, licenciados, desligados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades profissionais remuneradas, abrangendo ainda àqueles que foram impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica, em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-501-GM5, de 19 de junho de 1964 e nº S-285-GM5 e pela Portaria n. 1.104 do mesmo Ministério de 12 de outubro de 1964, que se fundamenta no ofício reservado nº 04, de setembro de 1964,e pela Exposição de Motivos n. 138, de 21 de agosto de 1964. (sublinhamos)

Também, no Senado Federal, o texto da Medida Provisória 2.151/2001 foi aprimorado por meio de emenda aditiva que acrescentou ao texto do inciso XI do artigo 2º da medida provisória a expressão “licenciados”, com a seguinte justificativa:

A maioria dos praças da Marinha e Aeronáutica foram licenciados com base nos atos 424, 425, 0365, etc (Na Marinha) e Portaria 1.104/GM3, (Na Aeronáutica) com fundamento em legislação comum (LRSM), quando na realidade ditos atos e portarias estavam eivados de vícios nulos por contrariar o princípio constitucional da equidade e da isonomia, podendo as Forças Armadas excluir qualquer praça, sem fundamentação plausível: bastava ser considerado ‘subversivo’, em desrespeito ao Princípio do Devido Processo Legal. (sublinhamos)

Concluindo, a edição da Portaria nº 1.104/64 revela expresso contexto de expurgo, verdadeira limpeza na massa de militares, majoritariamente de cabos, considerados subversivos pelo comando da Aeronáutica. Extrai-se, portanto, que houve clara perseguição, com evidente motivação política, a uma categoria determinada. A perseguição à categoria dos Cabos gerou efeitos individuais para todos os Cabos que ingressaram na Aeronáutica antes e depois da edição da Portaria nº 1.104, em 12 de outubro de 1964.

Não por outro motivo que a Comissão de Anistia, ao editar a Súmula Administrativa nº 2002.07.0003, declara o caráter de ato de exceção de natureza exclusivamente política da Portaria 1.104/64, fundamentada em dados históricos e documentais consistentes. Reveste-se, na verdade, de um reconhecimento de uma injustiça perpetrada pela ditadura militar contra uma categoria específica de militares, que foram impedidos de permanecer na Aeronáutica por motivação exclusivamente política, esta é a verdade.

Como de direito, impõe-se ao Poder Judiciário, no controle da legalidade e da constitucionalidade do ato administrativo, afastar as violações a direitos causados a todos os militares prejudicados pelo regime de exceção. Em assim procedendo, ao dizer o direito e, por conseguinte fazer justiça, o Poder Judiciário garante o respeito às específicas normas da Justiça de Transição, que constituem importante elemento para a pacificação social e para a construção de uma democracia legítima e duradoura.

 

 

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Postado por Gilvan VANDERLEI
Ex-Cabo da FAB – Atingido pela Portaria 1.104GM3/64
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