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Comissão da Verdade

Ação civil contra agentes políticos é dever-poder do Estado

 A Comissão Nacional da Verdade (CNV) divulgou seu Relatório Final recentemente, com uma lista de 434 mortos e desaparecidos políticos, entre os quais 362 já haviam sido relacionados anos antes pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).

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Comissão da Verdade

Ação civil contra agentes políticos é dever-poder do Estado


Por Sérgio de Brito Yanagui

 A Comissão Nacional da Verdade (CNV) divulgou seu Relatório Final recentemente[1][1], com uma lista de 434 mortos e desaparecidos políticos, entre os quais 362 já haviam sido relacionados anos antes pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Para cada caso reconhecido pela CEMDP, foi deferido aos familiares, a título reparatório, o valor de R$ 3.000,00 multiplicado pelo número de anos correspondentes à expectativa de sobrevivência do desaparecido[2][2]. A novidade do Relatório Final da CNV refere-se especialmente à identificação da autoria das mortes e dos desaparecimentos políticos. Resta saber, por conseguinte, se é possível a responsabilização civil regressiva dos autores dos crimes mencionados, como forma de compensar o Estado pelos gastos decorrentes das indenizações deferidas pela CEMDP.

No âmbito do direito internacional, há diversas normas que recomendam a responsabilização civil dos autores de graves violações de direitos humanos. A Assembleia Geral das Nações Unidas editou a Resolução n.º 60/147, do dia 21 de março de 2006, por meio da qual estabeleceu os “Princípios Básicos e Diretrizes sobre o direito à reparação para vítimas de graves violações de leis de direitos humanos e sérias violações de leis humanitárias internacionais”. A parte final do item 15 do tópico IX dessa Resolução prevê que o Estado deve ser ressarcido das indenizações pagas às vítimas, caso haja a responsabilidade individual de um agente. Segue a transcrição: “Nos casos em que uma pessoa [física], uma pessoa jurídica ou outra entidade é considerada responsável a reparar a vítima, a parte [responsável] deve proporcionar uma indenização à vítima ou compensar o Estado se o Estado já tiver providenciado a reparação à vítima.”[3][3].

O direito interno harmoniza-se perfeitamente com essa orientação. O artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal de 1988 prevê o “direito de regresso” contra o agente responsável pelos danos causados a terceiros, nos casos de dolo ou culpa. Na ótica estatal, o “direito de regresso” não trata de uma mera faculdade estatal, mas de um dever-poder[4][4]. De acordo com Canotilho (2013:916), “havendo individualização do agente, a ação de regresso é obrigatória por parte do Estado, a fim de recuperar do ‘responsável’ o que o erário despendeu”. A própria Lei n.º 4.619/1965, que “dispõe sobre a ação regressiva da União contra seus agentes”, determina em seu artigo 3º, que “a não obediência, por ação ou omissão, ao disposto nesta lei, apurada em processo regular, constitui falta de exação no cumprimento do dever”.

Além da obrigação jurídica, o dever do Estado de perquirir a responsabilidade regressiva de seus agentes públicos tem o importante efeito prático de evitar a recorrência da conduta lesiva praticada pelo agente público. Esse aspecto prático da ação regressiva vai ao encontro de um dos objetivos centrais da “Justiça de Transição”[5][5]: a não-repetição.

A ação regressiva de agentes públicos exige a comprovação dos três elementos da responsabilidade civil objetiva do Estado[6][6] – dano, conduta antijurídica e nexo de causalidade –, além da comprovação da culpa ou do dolo do agente público. Aqueles três requisitos foram efetivamente comprovados pela CEMDP, razão pela qual foram deferidas as indenizações previstas na Lei 9.140/1995. Como a autoria das mortes e dos desaparecimentos políticos foram identificadas pelo Relatório Final da CNV, então as exigências para a caracterização da responsabilidade regressiva encontram-se cumpridas.

É importante mencionar que a anistia política prevista na Lei n.º 6.683/1979 (Lei de Anistia Política) não tem implicação na questão da responsabilidade civil, por tratar exclusivamente da extinção de punibilidade de crimes cometidos durante o regime ditatorial. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), também trata apenas da seara penal. Em tal ADPF, foi pedido o seguinte: “declarar que a anistia concedida pela Lei 6.683/1979 aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”.

Aliás, a mera extinção de punibilidade jamais poderia abranger a responsabilidade civil. De acordo com o artigo 67, inciso II, do Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 –, prevê literalmente que a decisão que julgar extinta a punibilidade não impede a propositura da ação civil: “Art. 67.  Não impedirão igualmente a propositura da ação civil: […]  II – a decisão que julgar extinta a punibilidade”. No mesmo sentido, o ilustre jurista Eugênio Raúl Zaffaroni (2006:735) entende que “a extinção da punibilidade, qualquer que seja a causa, uma vez transitada em julgado a sentença condenatória, não elide a responsabilidade civil”.

Vale mencionar que o artigo 11 da Lei de Anistia prevê que tal “Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos”. Em outras palavras, a interpretação da referida Lei de Anistia deve ser feita de modo restritivo. A extinção da responsabilidade civil regressiva de agentes públicos com base na anistia política se configuraria meio transverso de garantir aos agentes públicos direitos referentes a indenizações e a ressarcimentos, o que é vedado por essa lei.

Por fim, nota-se que a responsabilização civil regressiva é imprescritível, tanto sob à luz do direito internacional quanto do direito interno. No direito internacional, de acordo com os “Princípios Básicos e Diretrizes sobre o direito à reparação para vítimas de graves violações de leis de direitos humanos e sérias violações de leis humanitárias internacionais”, os prazos prescricionais previstos no ordenamento jurídico doméstico devem ser afastados no que diz respeito a essas graves violações de direitos humanos, o que, naturalmente, inclui as mortes e os desaparecimentos políticos. Vale transcrever o artigo IV dessa Resolução: “IV. Prescrição. Quando previstas em um tratado aplicável ou contidas em outras obrigações legais internacionais, prescrições não serão válidas para graves violações de legislação internacional de direitos humanos e sérias violações de legislação humanitária internacional que constituam crimes sob legislação internacional”.[7][7] No ambito do direito interno, o artigo 37, parágrafo 5º, da Constituição, estabelece que “a lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. Como, neste caso, a ação regressiva é inegavelmente uma espécie de pretensão ressarcitória de dano causado ao erário, a responsabilização civil regressiva dos agentes público também é imprescritível no ordenamento jurídico brasileiro.

Portanto, a ação de responsabilização civil regressiva contra agentes públicos causadores de mortes e desaparecimentos políticos durante o regime militar não é apenas viável juridicamente, mas também um dever-poder do Estado. Não se trata de um mero revanchismo, mas sim de um imperativo de uma efetiva Justiça de Transição, que deve ser buscada por todos os Estados que tiveram a infeliz experiência de uma ditadura.

 

Bibliografia
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. 

BRASIL, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 6ª Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

 The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, 2004.

 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume: 1: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.


[8][1] O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade foi divulgado no dia 10 de dezembro de 2014.

[9][2] Artigo 11 da Lei 9.140/1995.

[10][3] Tradução livre de: In cases where a person, a legal person, or other entity is found liable for reparation to a victim, such party should provide reparation to the victim or compensate the State if the State has already provided reparation to the victim.

[11][4] JUSTEN FILHO (2010:1226).

[12][5] A “justiça de transição” é um termo consagrado internacionalmente, que diz respeito a um conjunto de ações que visam a reconciliar uma sociedade desmantelada por motivo de violações sistemáticas aos direitos humanos. De acordo com a Enciclopédia sobre Genocídio e Crimes Contra a Humanidade (The Encyclopedia of Genocide and Crimes Against Humanity, 2004): “A justiça de transição refere-se a um campo de atividade e pesquisa sobre como as sociedades dirigem-se aos legados de abusos dos direitos humanos, às atrocidades em massa ou a outras formas de severo trauma social, incluindo o genocídio ou guerra civil, a fim de construir uma sociedade mais democrática, justa ou futuramente pacífica”.

[13][6] JUSTEN FILHO (2010:1200).

[14][7] Tradução livre de: “IV. Statutes of limitations 6. Where so provided for in an applicable treaty or contained in other international legal obligations, statutes of limitations shall not apply to gross violations of international human rights law and serious violations of international humanitarian law which constitute crimes under international law.”

 

Artigo de:   é advogado sócio do escritório Torreão, Machado e Linhares Dias Advocacia e Consultoria e bacharelando em Filosofia pela Universidade de Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 20 de janeiro de 2015, 16h02

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Postado por Gilvan VANDERLEI
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