14/01/2005 – 17:15 | Edição nº 348
BRASIL
Um batalhão sob suspeita
Ministério Público denuncia fraude em milhares de anistias por suposta perseguição política a ex-militares da Aeronáutica
DIEGO ESCOSTEGUY E MURILO RAMOS
Nos últimos três anos, 973 ex-integrantes do Exército e da Marinha ganharam indenizações do governo federal, alegando perseguição política durante o regime militar. Na Aeronáutica, o número de indenizações é três vezes maior. São 2.857 casos. Para o Ministério Público, essa liberalidade esconde uma grande irregularidade contra os cofres públicos. ''É uma fraude evidente e grosseira'', afirma o subprocurador-geral da República Brasilino Pereira dos Santos. Ele investiga o caso há meses e já tem preparada uma ação de improbidade administrativa contra a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, responsável pelas indenizações. No alvo, estão os casos de mais de 2 mil ex-cabos da Força Aérea, que teriam sido indenizados irregularmente. Por mês, eles ganham pensões que somam R$ 9,5 milhões, e o governo ainda tem de saldar uma dívida de R$ 772 milhões em salários atrasados.
Todos os casos se baseiam em um artifício jurídico. Em 1964, o governo militar editou a Portaria no 1.104, que limitava o tempo de permanência dos cabos na Aeronáutica. Antes, eles podiam permanecer no cargo até a aposentadoria. Com a portaria, o tempo máximo na função foi fixado em oito anos. Ao final desse prazo, os militares tinham de passar no exame para sargento ou deixar a Força Aérea. Décadas depois, os militares que foram reprovados ou decidiram não fazer os exames estão pedindo indenização, alegando perseguição política. ''Foi uma decisão técnica e impessoal, aplicada a todos os cabos da Aeronáutica, independentemente de posição política'', diz o procurador Brasilino. ''Portanto, não se pode falar em perseguição individual.''
Cabo da Aeronáutica entre 1964 e 1972, Wilson Marcolino da Silva foi um dos beneficiados com a anistia. O governo federal reconheceu uma dívida de R$ 245 mil em salários atrasados e se comprometeu a pagar uma reparação mensal vitalícia de R$ 2.600. A ficha de Wilson na Aeronáutica, anexada ao processo de anistia, não mostra um rebelde. Do documento constam elogios dos superiores e o registro de que ele pediu desligamento voluntário da caserna.
Localizado por ÉPOCA no Rio de Janeiro, o ex-cabo, que agora é pintor, disse que espera para março os primeiros pagamentos. ''Saí da Aeronáutica porque estava acabando meu tempo de serviço'', admite. ''O pessoal de uma associação de cabos me procurou e disse que eu tinha direito a receber um dinheiro'', conta. ''A turma toda entrou. Gente de todo o país conseguiu esse benefício.''
Anistias irregulares custam R$ 9,5 milhões
por mês ao governo federal |
Documentos obtidos por ÉPOCA mostram que o comando da Aeronáutica está insatisfeito com a concessão das anistias. Uma carta do comandante-geral, brigadeiro Luiz Carlos Bueno, ao Ministério Público reclama que ''não foi dado às Forças Armadas o direito de contestar os requerimentos dirigidos à Comissão de Anistia, fazendo com que aquele colegiado decidisse de forma diversa da realidade dos fatos''.
Na mesma carta, o brigadeiro diz que, com a criação do Ministério da Defesa, ''a independência política do Comando da Aeronáutica ficou comprometida'' e a Força teria ficado sem condições de protestar.
O próprio Ministério da Justiça, responsável pela concessão das anistias, já reconheceu a irregularidade em centenas de casos. No início de 2004, o ministro Márcio Thomaz Bastos anulou quase 500 anistias. Eram casos de ex-cabos que se alistaram depois da edição da Portaria no 1.104 e, mesmo assim, receberam indenizações como se tivessem sido perseguidos por ela.
O Ministério Público e o Comando da Aeronáutica querem que o governo vá mais longe e anule todas as anistias concedidas a ex-cabos incapazes de provar que sofreram perseguição política. Nesse ponto, o Ministério da Justiça resiste. Uma política de governo, ditada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, determina que, na dúvida, seja concedida a indenização.
Com o entendimento adotado pela Comissão de Anistia, o rombo pode aumentar muito. Todos os 8 mil cabos que serviam à Aeronáutica antes de 1964 podem pleitear indenizações. Para a comissão, a decisão de limitar o tempo de permanência dos militares no posto teve caráter político. ''Os critérios usados na avaliação dos casos têm de ser elásticos, mas na hora de pagar a indenização é preciso mais rigor'', afirma o chefe de gabinete do Ministério da Justiça, Cláudio Alencar. #Q#
ANISTIA NAS ALTURAS
Ex-militares da Força Aérea ganharam três vezes mais indenizações |
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Exército
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2.857
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Marinha
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764
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Aeronáutica
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209
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O Comando da Aeronáutica descobriu as irregularidades na concessão de anistias no fim de 2002, quando os pedidos começaram a ser aprovados, às centenas, pela Comissão de Anistia. No começo do governo Lula, o Comando da Aeronáutica procurou a cúpula do Ministério da Justiça para explicar a situação. Depois de um ano de negociações complicadas, Márcio Thomaz Bastos baixou o decreto no qual suspendeu 495 anistias de ex-cabos, aprovadas com base na portaria de 1964. Mesmo assim, até agora, apenas 270 foram efetivamente anuladas. Nos outros casos, o governo simplesmente não conseguiu encontrar os anistiados para comunicá-los da suspensão dos benefícios.
Além das indenizações pela simples existência da Portaria no 1.104, o que mais irrita os militares é o cálculo feito pela Comissão de Anistia para pagar os ex-cabos. Nenhum deles está recebendo os proventos do posto antigo, que hoje gira em torno de R$ 1.300 líquidos. Todos ganham como se fossem sargentos, tenentes ou, em alguns casos, até mesmo como majores. A maioria recebe salário de segundo-sargento, em média R$ 3.250 líquidos. Os anistiados também não pagam Imposto de Renda ä e contribuição previdenciária, embora tenham direito a usufruir de benefícios dos militares, como planos de saúde e de odontologia.
Um dos anistiados que recebem como segundo-sargento é José Ivar Iaskievicz. Cabo da Aeronáutica entre 1970 e 1978, foi reconhecido como anistiado político pelo Ministério da Justiça há dois anos. O governo federal passou a lhe pagar uma pensão de R$ 3.300 mensais e assumiu uma indenização de R$ 240 mil em salários atrasados. Não bastasse supostamente ter sido perseguido pelos militares anos antes mesmo de entrar na Aeronáutica, Iaskievicz deve ter tido uma infância difícil. Afinal, ele tinha apenas 13 anos em 1964. A anistia dele foi anulada recentemente pelo Ministério da Justiça, mas uma liminar do Tribunal de Justiça do Distrito Federal restabeleceu a indenização. A reportagem localizou a irmã e procuradora dele, Benícia Iaskievicz, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, mas ela não quis explicar a perseguição política do irmão nem forneceu seu endereço. Só disse que ele se encontra em situação financeira difícil, vivendo de biscates.
Dentro do grupo de ex-cabos anistiados, há aqueles que nem sabem dizer ao certo se foram perseguidos. Mas o problema de memória não é empecilho para receber pensão do governo todo mês. ''O que é perseguição para um não é perseguição para outro. É difícil falar o que se passa dentro de um quartel'', esquiva-se o ex-cabo José Carlos Ferreira. Ele mora na cidade de Taguatinga, a 30 quilômetros de Brasília, e há 11 meses recebe um benefício estimado em R$ 2.500. Coincidência ou não, o aposentado da companhia de energia de Brasília está construindo uma casa de dois andares em seu lote, onde foi localizado pela reportagem de ÉPOCA. Ferreira confessa ter virado uma espécie de consultor para os colegas de tempos da caserna. ''Sempre tem um amigo me procurando para saber detalhes de como fazer para receber a pensão'', gaba-se.
Elias Campos, representante da Asa Centro-Oeste, associação que reúne ex-cabos da Aeronáutica na região, afirma que sua organização deverá encaminhar aproximadamente mil novos pleitos de benefícios à Comissão de Anistia ou à Justiça nos próximos meses. ''A maior parte dessas pessoas foi desrespeitada mais pela edição da Portaria no 1.104 do que propriamente por ter sido perseguida politicamente.''
Além do problema das indenizações irregulares, o governo ainda tem de lidar com o aperto orçamentário para reparar financeiramente os anistiados. Uma comissão formada pelos ministérios da Defesa, da Justiça, da Fazenda e do Planejamento decidiu que a melhor saída seria parcelar os débitos com os anistiados. Como o governo não tem dinheiro para quitar essa dívida de uma só vez, optou por dividi-la. No ano passado, reservou R$ 200 milhões. Neste ano, o montante previsto é de R$ 300 milhões. A conta seria fechada com o desembolso de R$ 400 milhões em 2006. Pelos novos critérios adotados pelo governo, os anistiados que tiverem direito a indenizações de até R$ 100 mil receberão de uma só vez. Acima desse teto, o governo quer negociar.
Fonte: Revista ÉPOCA | Edição nº 348 | 14/01/2005 – Um batalhão sob suspeita
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